.................OU SEJA, UMA CONCORDÂNCIA IDEOLÓGICA....................................................................................................

quarta-feira, dezembro 29, 2004

porque sim

desejo impune?
fina aresta viva
que corta e rejubila
- porque sim

reincide o lume?
geme sem queixume
adora e devora
- porque sim

por que perguntas
evidências?
acaso te vasculhas
anjo ileso de indecências?
está tudo exposto
rezas, sinas; tudo crenças
sê humano ao ser diferente
recusa o engano
penitente
repete a prece
insiste acreditando
que o plano é plano
sem ter fim
ilude o jogo
tira a lenha desse fogo
que a chama chama
num engodo
e a resposta
é dura e dura
- porque sim

terça-feira, dezembro 28, 2004

mental thing

a elasticidade com que te deixo existir
retrai-te
é a alma
a meter a matriz do medo
dentro da pele

segunda-feira, dezembro 27, 2004

Ogiva


Nos teus brados minha casa
Pináculo gótico que me eleva do pântano
E me molda os lábios em ogiva de espanto

Lá fora o mundo
Inquieto
Não percebe que nos desenhos de um louco
Germina a semente da nova forma
Bastião que aloja a história
Do átomo em revolução

Os meandros quotidianos
Inibem todos os planos
Só não se goram projectos
Que não tenham ar de infectos
Desviante é adentrar as arestas de um quadrado
Espartilhar correntes num filão aprumado
Como quem por decreto cronometra a evasão

Por isso
Escolher o gume das facas
Colher apenas bravatas
Desafiar a gravidade que empurra até a razão
- Que amor fazer sem ousar
Se perder, sequer se achar? -
Geometrias simétricas
Assustam-se face às arestas
E a vida é fio de navalha que só celebra rasgão

domingo, dezembro 26, 2004

sente


sente o que de novo sinto
indecente e rubra sem carmins postiços
sem mentiras airosas
que só adornam prosas

sente as faces amplas
e os dentes brancos a trincar os frutos
sem a infestação regulamentar de conservantes

alguns sons ainda se alongam
em pestilências
temem espalmar-se vazios
num fundo espesso que rescende amores
: mas são ecos mortos

sente a maresia dos portos
a flor do sal
vem ser batel
que trago ilesas
as velas que navegam corpos

sente e consente em mim
os cálculos inatos
multiplica-me anseios à volta dos seios
que o traçado do voo é ocasional
: vertigem improvisada que nasce por bem
nunca se despenha no mal

sente a transgressão do hábito
que embala o pêndulo suspenso do tempo
nem por um momento
se aquiete a mão no movimento
: renascer é fundamental

sexta-feira, dezembro 24, 2004

Um céu

de empréstimo
entusiasma-me a luz
e deixo-a escorrer
sobre as sombras cosidas que formam o breu
no manto da noite quero
estrelas bordadas com cheiro a canela
a lembrar que há um céu

terça-feira, dezembro 21, 2004

Coleccionador de sensações

Um fio de cabelo enrolado num dedo
Um beijo na pele a propagar-se em tropel
Um retrato a sorrir repousado a dormir
Um joelho que se agasta pelas escaladas na rocha
Um caderno com desenhos coloridos de desejos
Um vestido comprido a lembrar coisas de vidro
Uma música em vinil para uma tarde senil
Uma salva ora pomba ora projéctil de bomba
Uma família em decréscimo que se descola o empréstimo
Um amigo destruído em orgulho combalido
Um café arrefecido pelas tertúlias vencido
Uma pele em escamação pelo fustigo do verão
Uma chávena sem asa trazida de outra casa
Um coral feito de renda embrulhado em papel de seda
Um projecto falido no saco de um bandido
Uma rosa pot-pourri de um concerto que eu vi
Uma viagem de sonho cheia do pó de abandono
Um coração enxertado pelos cortes do maltrato
Um brinde renovado por cada ano derramado
Um futuro adiado preso em teias de passado

domingo, dezembro 19, 2004

Partir

[Se houver locais seguros
Servem para nos aquietar, sabê-los.
Alcançá-los e permanecer?
- Morrer.]

O medo é latina força
Desafio de mar e abundância
Cabo dobrado pela esperança
Bolero, tango, vertigem que roça
Rodopio sudado, sovado,
Guitarras dobradas pelo fado
Ágil de encanto
Carícia rubra de espanto
Que parte em caravelas
Se enleia nas coxas das pretas
Traz pimenta caiena, canela
Envolve em aromas exóticos
O sem limite dos portos
Dobra o norte, refaz a arte

Escorbuto é o risco da sorte
Naufraga só quem não parte

momento acidental


domar silêncios
- vergá-los ao jugo da vontade -
recebê-los com chá de pinhões e incenso
deixá-los percorrer a fazer alarde
e se instalarem no bordo do tormento
no meu acidental momento
de atenção alarve

pirilampos inusitados torcem
a monocórdica frase
em poesia
uivando palavras novas
sem que tenha tempo
para as saber

só sei
da aspereza dos vazios
incrustados na língua
a fosforescer

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Natalstício

inventaram o natal
para me arreliar – só pode!
construíram presépios
arquitectaram afectos
para remediarem o mal – só pode!
de que me servem
os gingle bells?
os joyeux noëls?
máquina infernal de céus inóspitos
a perpetuar a romaria de amores agnósticos
- só pode!

quinta-feira, dezembro 16, 2004

Dispersando flores

passar as mãos pelas
palavras
para as expurgar de
dores
e deixar-se enlear na teia dos
segredos
assim, sem pensar amores
degredos
dispersando flores

Aos pares


Morre-se aos pares
Faz mais sentido
Perder-se em labirintos
De umbigo
É só depois

quarta-feira, dezembro 15, 2004

Parto em dois

O que é dado saber?
Parto em dois.
O que é dado viver?
Parto em dois.
O que é dado oferecer?
Parto em dois.

Uma parte sempre oculta
Na unidade mais arguta
O que é dado
Parto em dois.

terça-feira, dezembro 14, 2004

Do outro lado

Do outro lado
Existe um ser
Semente apetecível
Em maçãs dissimuladas
O pecado é já saber

Ascende em músculo de querer
Como alvoradas
Camufladas
No lusco-fusco a entardecer

Expiação

Estabeleço um contrato
Só, comigo
Não me quero em castigo
Quero a calma
Não o bulício
Desafiante do vício
Façamos um pacto
Abandona-me
Quero-me inteira
Sem emoções
Alucinações
Musas de cheiro ou tacto
Neste momento exacto
Estripo as ânsias do quarto
Ressaco dessa canseira
Sem grilhões de bebedeira

domingo, dezembro 12, 2004

Estado líquido

Não tenho como escorraçar o rio
Que me cerca os sonhos
Se os apartar em ilhas
Não serão mais sonhos, mas periferias
Logros submersos, os meus passos
E istmos intransitáveis, os meus abraços
Pesar-me-ia toda essa água
Sem odores salivados por sargaços
Não vou escorraçar esse rio
Banha-me os sonhos
Leva-me em ombros
E eu flutuo dentro do sonho a gemer cio
Não tenho como ignorar a enxurrada
Suga-se o beijo e solta-se o rio
O resto é flama incendiada em desvario
Mais nada

sábado, dezembro 11, 2004

Exortação


Vamos fingir
Fazer de conta
Que o nosso bocado de tecto
Tem frescos magníficos sem marcas de insecto

Vamos ampliar
As abóbadas do céu da boca
E ecoar espasmos lindos de deixar a voz rouca

Façamos a sério
Tudo o que encerra ganas, virtude e mistério
Sem filigranas de gestos barrocos com vício de tédio

Já sabemos
Agonizar sem espantos
Que o ócio é negócio judeu sem retorno
E o tempo urge se se sente sem dono

Façamos amor amando
Em excessos de arte
Até ao enfarte
Que desperdiço tempo se o momento não for amar-te

sexta-feira, dezembro 10, 2004

Basta!

Quando tudo se repete
É tempo de partir
E dizer basta!

Renovar os olhos a olhar o mesmo?
Deformar o mesmo com os mesmos olhos?
Renovar o mesmo renovando os olhos?

Cenografia gasta
Reinvenção de escolhos
O olhar partiu-se
Já nem sobram olhos
E o horizonte afasta-se

*
Insistir em sóis poentes que adormecem flácidos
É negar auroras fartas no baixar dos braços

Capitular


Espalhar-me à toa
Sem precisar os poisos.
Que me importam os cais
Se o mar me chama?
Ficar aos poucos
Sem inflar as velas
Na modorra morna?
Agonizante exílio
Que asfixia os poros!
Melhor que soçobre
Em infames voos
Que jazer tranquilo
Entre os vivos-mortos!

quarta-feira, dezembro 08, 2004

de caminho,


de caminho,
deixa-me dizer-te
que me sinto ampla de pele
restaura-se o poro
de caminho,
deixa-me dizer-te
que as mãos que sentes abertas
não se fecham
inflamam o tacto
de caminho,
deixa-me dizer-te
que persigo o verão de sol sincero
pois que os caminhos
que me deixas que te diga
de caminho,
levam sempre
ao infinito de outros caminhos
encharcados de sol
plenos de abraços
e tactos
e verões
por onde eu caminho
de caminho,
apenas tu esbarras
na opacidade dos silêncios
deixa-me que te diga

segunda-feira, novembro 29, 2004

Sinuosos


que farei contigo?
que farei de nós?

sinuosos carinhos
- mil caminhos!
por dentro de poemas escondidos
pó de luas,
sob as mãos, abertas
as minhas nas tuas

sinuosos caminhos
- mil carinhos!
persigo a aventura de um raio de lua
sob os olhos, fechados
os meus nos teus

que farei comigo?
que será de nós?

domingo, novembro 28, 2004

Resto zero

A vida no atropelo dos afectos,
A meretrizar,
Forma uma unidade imensurável de
Bocas suspensas, sem hálito.

Todas se parecem quando gritam solidão.
Fá-las irmãs pelos votos?
Ou retira-lhes o substracto da razão?
Tão desigual o gesto da mão,
Um hábito.

Bocas suspensas, sem hálito.
Decepção.

O mal-afecto leva ao desafecto
O hábito.
A soma do um-mais-um é nulo resultado.
Sem cumplicidade plural?
Resto zero. Anulação.

sexta-feira, novembro 26, 2004

Acústica II


se te digo
amo-te
fica a verdade inacabada
pareço operativa de desejos
quando basta
no eco gutural
dos gemidos que me arrancas
conseguires ouvir-me
amo-te
e reverberar
no táctil cingir das ancas

Acústica


Não!
Não queria tectos fechados
Nem abóbadas

Queria o meu verso livre
a viajar por ti – só sentimento!
Queria emancipado o pensamento!

Sem o ricochete fraudulento
que devolve
compridas e pastosas
as palavras limpas
do meu poema sem rigor de rosas

quinta-feira, novembro 25, 2004

Incapacidade


As reflexões obrigam
certas palavras a flectir-se.
Tenho uma série delas acamadas,
anquilosadas e a minha vontade
era nem lhes tocar, que tenho cãibras
de as pensar abandonadas!
Ah! não fora esta incapacidade de negligenciar afagos!
Esquecer-me-ia delas
e o meu sono seria justo,
surdo e apaziguado.
Não fora esta incapacidade de dormir acordado
e os gemidos de dor não me incomodariam.
Soariam como sinos a repique no cimo do meu telhado!

Esta vida


Pensei largar esta vida
e deixá-la de forma displicente
sobre um banco público,
que ficasse próximo
de uma rua de muito movimento.
Acendia um cigarro,
e esperava
o primeiro que se aproximasse.
Esta vida que me serviu,
servi-me pouco dela,
por isso, não é vida coçada de uso;
assentaria bem em muito boa gente.
Sou eu que estou cansada dela.
Pensei largar esta vida
e deixar-me sem nada
sentada num banco público.
Num banco que ficasse
distante de uma rua de muito movimento.
Para poder acender um cigarro
e apenas o fumar
sem ter que pensar nela.
É isso. Pensei largar esta vida porque penso.

quarta-feira, novembro 24, 2004

Desculpa

Desculpa
O que dou demais
Livre assim, farto
Em abundâncias
Desculpa
Mas não sei extirpar
Da vida o sonho
E queria poder amar
Em paz
Como as crianças

Desculpa
O que não dou
Que não invento
Oceanos
Se água é tudo
Então sou
Molha-te a linguajar
Mas procura ao
Navegar
Não chapinhar desencantos

Desculpa
Se tenho uma fé
Sem esquadria
Nem tessitura
É que não sei
Caminhar
Sem mundos calcorrear
Que nem cigano sentando
Nómada vício
À cintura

Desculpa
Se todo esse viço
Me eleva ao precipício
Em espirais de
Quero mais
Mas viver é um ofício
Que não pára
Faz comício
Regenera
Solta-me os ais

terça-feira, novembro 23, 2004

Diapasão


Entre os lábios, fica a vibrar
a boca da voz, se beijo digo,
antes de lá ter chegado nascido
- não a nostalgia de lá ter estado! -
como a mente a preparar o fone em canto
- que a música pré-existe o jorrar em som.

Submetidas ao tecto do canto, como notas indecisas,
celebram-se histórias apostas,
- na voz que fala, na voz que cala -
esmagadas sob as partituras
que o tempo vai escrevendo na pauta estranha das costas.

Assim se regem concertos
nas mãos de enlouquecidos maestros
que elegem manusear a pulsação dessa voz
com a precisão dos seus gestos.

segunda-feira, novembro 22, 2004

Indistante


A fazer esquina com os sentidos
A dar sentido a todas as esquinas
A aglutinar o inabraçável
Tu!
À distância de um toque num sonho indistante
O meu instante de romeira de abraços
A pendurar sentidos nas minhas esquinas de pregos flácidos
Eu!
Sem sentido que dê sentido ao exacto
A engolir sonhos dum trago
Que o sentido com sentido não faz sentido
E o consentido é regurgitar actos inexactos
Tu?
Derramado no sonho indistante
No meu instante de abraços

domingo, novembro 21, 2004

Estigma


Há palavras que são morangos
Há palavras que são tamancos
Outras, chão, céu, oceanos
À palavra solta, nova,
Que não vem de lugar nenhum – apenas chega
Que não quer ir ou voltar – espera
A essa, não a molestem
Não a obriguem a fazer prova
Que venha, se instale – nos beba
Que vá, se refracte – nos leve
Indiferente o que carregue
É a arribação que nos salva – o frémito
Limpa as asas ao pretérito

sábado, novembro 20, 2004

O desejo de ti


Se te desejo
sem ter sede
é porque
não é à sede que desejo.
Ter sede é um desejo
de água – inadiável.
E eu não tenho sede
(mas te desejo).
Se te desejo
sem ter sede
e
não és água inadiável
que sede é esta
que não é sede
de beber água inadiável?

O desejo de ti – invariável.

quinta-feira, novembro 18, 2004

Tenho dias. Ponto.

Pronto.
Tenho dias assim, eu sei.
Iguais a outros, diferentes, outros.
Dias sobre dias.
Sem sumo.
Nem rumo.
Desapegados e rotos.
Ponto.

Pronto.
Tenho dias apenas, eu sei.
Em que me torço e destorço.
Dias de pleno alvoroço.
Atropelados.
Acidentados.
A que lhes sugo o caroço.
Ponto.

Pronto.
Tenho dias imensos, eu sei.
Dias lentos, peganhentos.
Dias longos de espaventos.
Que me enchem.
Me preenchem.
A esses não os quero lestos.
Ponto.

quarta-feira, novembro 17, 2004

breve paisagem

vidro madeira e metal
construção acidental
sob latada de esperança
transparência volumétrica
conjugação assimétrica
a simular a balança
pendular beijo de vício
haste terra e precipício

a solidão mais gregária
do que o amor em comício

Erro ideográfico

Hades desfolhar livros
Até saberes que
Hás-de folhear saberes
E então, aí
Livre pela mão de livros
No Hades vais te perder

terça-feira, novembro 16, 2004

Aos perfeitos amores há-os (imper)feitos amantes

aos que se amam
.há-os que já não amam
aos que não sabem se amam
.há-os que não sabem que amam
aos que não sabem o que amam
aos que não sabem quando amam
aos que não sabem como amam
.há-os que querem amar
aos que não sabem amar
aos que não querem amar
.há-os que amam amar

sábado, novembro 13, 2004

atitude


pendurar
uma luz desnecessária de modo a ver-se
um tecto
num plano a norte
quando o que rasga o horizonte é
latitude?

buscar
o sol!
não esperar que nos encontre

nem que a rotação subverta
o movimento
projectando o recorte das próprias costas

cinturar
o eixo
ao pensamento é amestrá-lo e proibir
a pérola
à areia nas ostras

sexta-feira, novembro 12, 2004

rosa inicial

escrever sem risco
riscando riscos perceptíveis
é dizer nada e sublinhá-lo
fica o material no éter
a deleitar os olhos
adormecer é ser feliz
*
pegue-se numa rosa
encanto imediato – símbolo garantido, sucesso adivinhado
mas
melam as pétalas, esvai-se o aroma – fenece o gesto que se queria prolongado
a rosa roça aquele bem imediato
inala-se rosa num percurso de nariz, olhos – um tacto

decepe-se corola, cor – faça-se um trato
dizer da rosa apenas caule, seiva – ler-se a raiz
risque-se puro nesse risco abstracto
o concreto do cheiro – não o olfacto
*
dizer tudo é dizer nada, só artefacto
sobra a rosa inicial de quem a diz

quarta-feira, novembro 10, 2004

Da janela

disseram-me
que não vinhas ver-me à janela
disseram-me
que não há nem estrada nem passeio
não é rua onde caminho
disseram-me
que quando vinhas ver-me à janela
me olhavas sem olhos
que não ando enquanto caminho
tanto quanto me não vês
quando vens ver-me à janela

e eu caminhando
fazendo rua com os meus passos
sob a janela, tua
eu, por mor dela

fica a paisagem sem nada
dentro dos olhos que trazes para me ver da janela

terça-feira, novembro 09, 2004

Anoitecem diurnas cidades

dobro as palavras
como quem espreme lábios
que pingam beijos
mas que não saciam
nem gastam desejos

fecho-me os olhos
e os ícones elásticos
espreguiçam-se
e escorrem como óleos
langorosos
empastando-me os poros

anoitecem cidades
cada beijo põe uma luz em cada beijo
a alvorar insaciedades
fica-se assim
colado no avesso dos olhos
onde as imagens recriam o que não vejo
a orgasmar pelas vielas do desejo

talvez

no nada dizer se diz
o sim e o não, talvez
que o silêncio
urde enormes catedrais
magnete de peregrinas dúvidas
dízimo sempre adiado
como o vinho dentro das uvas

segunda-feira, novembro 08, 2004

Ama-se

Ama-se
É tudo
Razão rasante
A mirar o amor a amar
Escrevê-lo é minguar
Lê-lo é desgastante
Ama-se
É tudo

domingo, novembro 07, 2004

Intocar

Liberto as palavras quando
não lhes toco.
Sempre.
As agrafadas inibem
o uso
de outras. As intangíveis.
As que não escrevo não existem.
São imensas. Porque não existem.
Mas é nessas que a pontilha metálica franja
as que quero possuir.
O espaço em que o agrafo se dobra em arco e enforma
abdómen de
ponte suspensa sobre a água corrente.
É o lugar onde
se realiza o binómio da palavra.

É no vácuo
translúcido e impalpável
em que o arco se suspende
que sou tocada.
Ou seria
ponte suspensa sobre a água corrente.
Mas esse ser não é o meu.
Esse é o ser da palavra tocada.

Atrás do infinito alojam-se
sem tecto
as palavras que desconhecem
o meu tacto.
São as que não escrevendo evoco.
Livres de maltrato
e eu nelas suspensa
em arco.

Tudo o mais são frases ou
aquedutos fossilizados.
Que transportam o mesmo.
Mas nunca o vácuo que adormece entre a
ponte suspensa sobre a água corrente.

quinta-feira, novembro 04, 2004

O vento nas costas

Não te pergunto que recado me trazes.
O vento nas costas é símbolo bastante
Ouço-o trazer-te e levar-te
Indiferente à arte
Nem sequer pergunto por que
É bem o que me fazes.
Chegas e partes.
E o movimento fica retido nessa imobilidade
Incontido porque não se contém
Por isso não chegas nem partes
És o vento nas minhas costas
E eu ouço-o trazer-te e levar-te.
Ouvi-lo é a minha arte.

domingo, outubro 31, 2004

Avermelhar

Inventar-te é o meu castigo.
Ardem-me as visões e a alma.

Meço o abraço pelo comprimento
da ausência dos
teus dedos nos ângulos dos meus mamilos.

Dentro
o cheiro lavado a cair do lençol.
As ânsias assimétricas a remexerem-me as mãos.

O teu lugar é aqui
no de lá dos aromas onde
o teu beijo me desprende o vermelho dos sorrisos.

Improvável universo

Partir os sons para um
código de afectos.
Difícil geografia de palavras-terra, de palavras-água, numa geolinguagem
sem gravidade.
Ficam as palavras
sem tecto, a fazer tecto sobre
as minhas mãos no teu corpo.
E o desejo sustem infinitesimais opacidades que se desintegram no
silêncio das carícias.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Deitando

Deito as palavras.
Quero que descansem.

Deito-me nas palavras.
Canso-me.

Queria-me palavra em descanso.
Deita-me.

terça-feira, outubro 26, 2004

Vem ter comigo

Vem ter comigo sem passado.
Por certo também passarás.
E serás o meu passado.
Terás passado pelo meu presente.

Vem ter comigo ao meu presente.
Por certo me presentearás.
E quando passado te fores,
Terás tido o meu presente.

Vem ter comigo.
Sem teres passado és presente.
Ainda que não venhas, já foste.

sexta-feira, outubro 22, 2004

interjeitar

pões-me em a
e espanto em o
visto
l e t r a s
para despir
palavras
glossário imenso
a tanger
silêncio
e por dentro
nadas

quinta-feira, outubro 21, 2004

vem cá

vem cá
acerca-te devagarinho
quero mostrar-te o caminho
do côncavo do meu olhar
vês-me inteira?
é vez primeira
tardei em ver-te chegar
mas vou
dizer-te baixinho
colar em beijos carinho
até a dor se gastar
assim
madura e premente
deitada nesse presente
vertical no teu lugar

terça-feira, outubro 19, 2004

poema amassado

ter um poema amassado
no bolso
para um dia-exaustão
alisar-lhe os vincos
afagá-lo com a mão
está quente o poema
do aconchego do bolso
ah doce abandono...
o conforto que é ter-te
inerte e indolente
anichado encostado
à palma da mão
tenho um poema amassado
no bolso
amuleto escondido
que trago comigo
num sossego-alvoroço

segunda-feira, outubro 18, 2004

Amor sujeito

Amor sujeito.

Encosto-te
À esquina
Da palavra
E nela
Me deito.

De que outro jeito?

quinta-feira, outubro 14, 2004

Conta-me histórias

Conta-me histórias
Quero ouvir palavras novas.
Pode ser antiga e pura
Quero daquelas que perduram
Sem nexo ou linear
mas agora.
Que enovele ou distenda
Que regenere ou surpreenda
Daquelas que só deslumbram
Pode ser recente e suja
mas agora.

E demora...

quarta-feira, outubro 13, 2004

Ainda que não repares

Se reparares...
Um risco tosco mistura parcerias
Doce e amaro certo e errado

Ímpares pares
Reclamam a assimetria dos lugares
Se os reparares

Se a reparares
A cegueira é simétrica
Não vislumbra para lá da recta

Destapa o pudor de sobre os olhos
Os olhos sobre todos os lugares
Se reparares...

terça-feira, outubro 12, 2004

Bocas sobre bocas

O que sentes
É a presença
Esborratada
De outras bocas
Sobre as bocas
Nesta boca
Derramadas

Bocas novas
São a tua
Que conserva
Virgem prova
Que essas bocas
Nessa boca
Se renovam

Cambiante

Mulher
Que sonha
Ser tomada
Quando toma
É a si que toma
No sonho
Do outro
Se transforma

sexta-feira, outubro 08, 2004

Obra d’arte

E corta
E rasga
E parte

E corta
E rasga
E parte

Assim se faz a arte

E molda
E solda
E cola

E molda
E solda
E cola

Assim se faz a obra

quinta-feira, outubro 07, 2004

Fachada

Devolvo-me à lembrança
Do que fui.
Pereço entristecida
Deitando as mãos à vida
Sem norte
Dando a sorte por vencida.

Recordo o diamante
A lapidar.
São vidas deslaçadas
Esperanças adiadas
Quimera
A dissolver-se devagar.

Fachada restaurada
A rigor.
Colunas reforçadas
Paredes escoradas
Palácio
Devoluto sem calor.

terça-feira, outubro 05, 2004

Pintar murais

sempre as palavras
escondidas nos gestos
cíclicos e pontuais
a encharcar incêndios
a propagar tempestades
a saltar do dorso de verdades
escancaradas ou veladas
intemporais

anseio sempre por palavras novas
espero a reinvenção da duração das horas
para que se dilate o tempo
se evada da cadeia do momento
e se sinta a urgência
de pintar murais

mas os silêncios
resistem à erosão vagarosa
lapidam-nos memórias
roubam-nos pedaços
mutilam-nos sem parcimónias
e as palavras encostam-se
rendidas e mal nutridas
às investidas das horas

salto desse dorso e peço
que me chegue novo alento
que não se canse o tempo
de arrancar e limpar palavras
de revalidar as mais usadas
de mas perfumar como magnólias
ah! que inodoras demoras!

se me acerco das palavras
e se ao tempo mais tempo rogo
é porque sei que assim morro!
abraça-me forte em socorro
dá-me do amor o soro
com que se contam novas histórias
protege-me, ó tempo
do atropelo insano
com que se tecem silêncios
pejados de más memórias

sexta-feira, outubro 01, 2004

muda Lisboa

alguém
desapareceu
definitivamente
nada disse
sua maior cobardia
corro as cortinas
metálicas
espero que chova
no silêncio
de palavra
muda Lisboa

quarta-feira, setembro 29, 2004

sensações

semicerro sinais
são ciclos que sei
e os sabendo os cicio
sussurros de cios
serenos, sensuais
sinistra sequência
sem sexo cerzido
ou sexto sentido
que salve silêncios
simples solfejo
sibilina sonata
salpicos sofridos
sem sabor a sal

segunda-feira, setembro 27, 2004

Amo, logo insisto

habita-me o hábito
da tua ausência
inscrito em fragmentos
mal aprumados de indiferença
Amo, logo insisto
repego pedaços
soltos ao acaso
sem acaso que convença
Amo logo, insisto!
desenho de cor
revendo esboços
da tua presença

sexta-feira, setembro 24, 2004

Tenção

pedes possíveis e respondo infinitos
ofertas lições e escrevo canções
pego sempre no que a ti te sobeja
não conheço a soberba nem sei a inveja
embora te veja planando num espaço
finito de amor, enleado em clamor
carente de abraços que somem pedaços
que tragam justiça além da cobiça
que dêem sentido ao que trazes nos braços

triste a sorte de quem perdeu o norte
a façanha maior de se ser o herói
da sua rua, pequena e tão escura,
que qualquer lampião fundido seria
tocha ardente, candeia de gente

mas medes os passos não pelo que sentes
por isso te auguram, almejam, asseguram:
a imagem perfeita da solidão futura!
também sei, porém, que te é indiferente

seguram-te estacas de ideias baratas
lealdade, a corrente; mas nunca evidente
perdido em abismos relevas avisos
não vá o futuro unir-se ao presente

quinta-feira, setembro 23, 2004

Tolda-se o céu de verão

Lentamente se pressente
A náusea da suspensão
Réstias quentes, derradeiras
Desse teu lado, as primeiras

Últimas, na minha aflição
Sereno s’instala o outono
Calor em pleno abandono
Em gesta de redenção

Deste meu canto poente
Se sente abrir a nascente
Alvorada em tua mão

Arrumam-se sol e maresia
Cai a noite mais vazia...
Tolda-se o céu de verão

sexta-feira, setembro 17, 2004

Na língua

Na língua existe um mundo
de palavras
em estio e cio
ou negras e obscuras
- gosto de as testar
e saber maduras.

Aglutinam imagens
que sugerem viagens
redondas ou pontiagudas
traçam tangentes
de sensações
- plenas permutas.

Na minha língua
descansam pedaços
de outras línguas
- estilhaços engastados
que se transmudam.

quinta-feira, setembro 02, 2004

Para lá do que há

Para lá do que há se mostra o que é
O que é se esforça por parecer
No que há, detrito se apresenta
Descansa na espera de vir a poder
Ser visto para lá do ser
E ser o que parecer não pode
A imagem que se resolve
Projectada sem muro haver

sexta-feira, agosto 27, 2004

condenados

condenados
a um espaço
a um tempo
de alma encastrada
num corpo prisão
lancinamos gritos
projectamo-nos
aflitos
como a maré cheia
que não cabe no leito
e se evade
veloz
a encharcar o esporão

quinta-feira, agosto 26, 2004

Árvore nova

Que novidade trazer te poderei?
Tudo o que vi, ouvi, toquei
Já outro alguém te contou!
Resguardo a proeza de te surpreender diferente
Que te enrolo em novo espanto
E te mostro a semente
Da rubra árvore que ninguém ainda ousou

quarta-feira, agosto 25, 2004

sobram as mãos

sobram as mãos
que não poisam fácil
e se enovelam em nervosas melodias
enlaçam, sossegam, apontam vazias
o espaço impregnado da tua ausência

desenham trajectos
plenos de impotência
rasgam na pele extrema
sem projectos
carícias novas

de mãos vazias se enchem as horas

Desejo

Solta-se o diabo em mim
Que também o tenho
Encarcerado, indefinido, amordaçado
Anjo caído, felino ferido e açaimado
A lembrar-me de nós por todo o lado

Evade-se o desejo e corre
De mim para ti
De ti para mim
Querubim bailando encapuzado

sexta-feira, agosto 20, 2004

coisas

hoje
só queria falar de coisas
boas
para isso
tinha que referir pessoas
mas
desaprendi como o fazer
pois as pessoas
para falar
não precisam de pessoas
bastam-lhes coisas
ainda que sejam
menos boas
e
só de coisas
não me apetecia falar

quinta-feira, agosto 19, 2004

Morre-se, pois!

Morre-se, pois!
Na hora dos mal-amados
No bulício desenfreado
Das bocas na dobra dos braços
Que dizem não ser capaz
E mais
No grito que escapa
Que ensurdece na escarpa
Quando ecoa e ribomba
E desvia o norte à pomba
E faz do homem rapaz

Morre-se, pois!
A meio do caminho
Trocando amor por carinho
Com medo do nunca mais
E mais
Na fuga já sem retorno
No nó anichado no estômago
Que priva de saborear
As policromias de amar

Morre-se, pois!
E revive-se sem vontade
Sabendo com toda a verdade
Que o chamamento é maior
Ainda que fosse melhor
Deixar o barco ancorado

E mais
Soltam-se amarras do cais
Sempre e Nunca?
Nunca mais!

quarta-feira, agosto 18, 2004

Tão fácil falsear escrevendo

Tão fácil falsear escrevendo
Limar arestas, escancarar a fresta
E retocar na metáfora a evidência do que não presta!
Conspurcam as palavras só de as usar!
Arquitectos de sons, copistas de imagens
Todos falidos de esperança
Carregam fardos de inconstância
Embelezam ideias que não têm
E pensam que as palavras se sustêm
Sem caroço!? Torçam o pescoço!

Depois, há o carpir com carpideiras
Ensopar de mágoas as ideias
E servi-las em baixelas contrastadas
Fingindo que não são fanadas
E que até brilham fundidas
Sejam breves, ou compridas!
Que o importante é a catarse
Do que jorra sem parar!
E se o poeta se catasse?
Quem o mandou pôr-se a falar?!

Aos mudos não sobram gestos
E aos cegos se poupam excessos!
E eu divago; não digo nada
Fingindo-me amofinada!...
Quero lá saber da verve
Do que não se diz quando se escreve!
Quando se abre a boca e não sai nada
Está o universo, duma assentada,
A rir-se de nós, pobre rima inacabada...

terça-feira, agosto 17, 2004

Ex-aequo

Conheço-te por detrás do rosto
Não te impacientes!
És feito de sorrisos genuínos
E de mansas mágoas
Que se agigantam e rebentam ferozes
Enleadas em limos e lavadas pelas águas!
A acalmia revela o destroço
E devolve à praia o rosto
Tisnado de sol e curtido de sal
Reconheço-me nesses traços
Por isso te abro os braços
E te embalo
E te dou colo
E até me enrolo
Porque sei o que me falta
Porque gosto de quem me abraça
Sem mo pedir, sem mo cobrar
O sorriso que escondes é transparente
Não preciso ser vidente
P’ra descortinar o que te faz bem e o que te faz mal!
É tudo tão simples, afinal...
Quem dá apenas o que lhe sobra
Esconde o tesouro e só dá esmola
E eu de ti só quero o igual!

segunda-feira, agosto 16, 2004

Maresia insuportável

Maresia insuportável
Quando me faltas!
Bordeja em franja
O desejo de infinito
E solto o grito
Na raia do absurdo.
Fico imóvel e não luto.
Deixo-te entrar...
Se não me mexer consigo tudo!
Demoro-me na espera
Que o porvir não se altera
Das marés é próprio o ir e o voltar

Aquieta-se o espaço e
Não se engana a gaivota
Que bem conhece a cadência do mar...

quinta-feira, agosto 12, 2004

rebordo líquido

nas margens formam-se bancos
de sal, como escamas
vestindo as dunas
adornadas de chorões

... de costas voltadas para o rebordo líquido

a paisagem fala da água, não a tendo
os sulcos deixados pelo vento – estive aqui!
a calvície falando do poente
o ninho vazio lembrando o pássaro
o areal a disfarçar a rocha

... de costas voltadas para o rebordo líquido

e o esquecimento adormece
a ideia de mar
fantasiá-lo é fustigar o corpo

terça-feira, agosto 10, 2004

Dizer caminho

Dizer caminho
É já sair do espaço.
Trilhar palavras
Que o tempo produz.

E a penumbra aloja-se inteira
Descansando imersa
Numa esteira de luz.

terça-feira, julho 27, 2004

Apenas ser

Hoje só me apetecia andar sem rumo
Obedecer à vontade dos passos
Deixar-me guiar por entre braços
Pendurar-me em beijos sem cansaços
Pôr as vozes em off, desleixar o aprumo

Hoje só me apetecia vagabundear lembranças
De mochila a rojo, renovar as rotas
Profanar viagens, dormir em palhotas
Comer da vida apenas hóstias
Percorrer altares de mundo

Hoje só me apetecia vida sem queixumes
Destilar no sangue novos perfumes
Apagar o hiato, o absurdo, o inóspito
Recuperar o longe, o aqui, o próximo
Alcançar do chão apenas cumes

Hoje só me apetecia recuperar o essencial
Colar sentimentos picotados
Alisar os amarfanhados
Rescrever o sentido dos fados
Lavar da vida o que me faz mal

Hoje apetecia-me apenas ser
Apenas tanto por fazer

domingo, julho 25, 2004

O beijo

Não receies nunca a prisão do meu beijo
que laça e desprende num ápice de arpejo.
Melhor não ficares se não te deres inteiro.
Quem se demorar que saiba primeiro
distinguir amarrar de amarar
partir de voltar
mensagem de mensageiro.

Prisão maior é essa
ficar-se amarrado a falsa promessa!
Amarar no deserto
julgar-se longe e afinal estar-se perto
de se afundar num mar de areias
confundir ideais e ideias
por não ter o mar por certo.

No meu beijo nasce o estio.
Navega-se vindo de um rio
e aporta-se quando amanhece.
Entre o que é e o que parece
reside a diferença imensa.
Só quem o deserto atravessa
sabe que o mar não se esquece;
sabe que ficar não compensa.

sábado, julho 24, 2004

- Indiferente!

Agita-se o tecto do silêncio.
As palavras ressoam mudas,
Independentes do movimento dos lábios.
- Indiferentes!

Desengane-se quem olhar para o Tempo
E nele vir mais que simples medidor!...
Os segundos pingam, sem urgência
Adensam-se formando horas, dias
Não importa se cheias, se vazias
Que o caminho é para a frente! Sem qualquer pudor!
Os ponteiros não param e deixam a tracejado
O espectro do percurso trilhado ou por estrear
Como rastro de escrita presente ou ausente
- Indiferente!

O Tempo sucede ao tempo
Com o imperturbável rigor da rigidez repetida
Alertando que o Tempo é irrepetível.
- Indiferente!

(Cerze-se sempre lírio e restolho.)
E lá fora, o vento não se distrai!
Persegue, abana e fustiga o robusto bambuzal.
- Indiferente ou igual!

sexta-feira, julho 16, 2004

Elos

Viajo cruzeiros, peregrino rotas,
Mas sempre descruzo os braços
E as mãos vão soltas.
O destino reúne a partida.
Aporto inteira ao cais
Vinda das voltas da vida.

Enliçadas na bagagem
Vão sempre as memórias
A rojo as transporto.
Pesam-me mas pertencem-me
E já nem noto.
Algumas nem as desdobro
Andam de cá p’ra lá coladas ao forro.

Por isso sei que nunca me aparto;
O que fui, lança o que sou!
Sou assim,
Vou deixando elos de mim
Enlaçados a tudo o que faço.

quinta-feira, julho 15, 2004

Naufrágio

Assinalei com letras
trilhos e sendas
Intentei com versos nus
abrir poemas
Que te guiassem
p’los corredores do instinto
E te trazendo
te bebesse como absinto.

A espera plena
redundou em desenganos.
Caiu o breu
nos desérticos oceanos.
Sobram-me mares
revoltos e destroços
Jazem na praia
caravelas, pássaros mortos.

Frágil, a esperança
encalhou por entre seixos
Exangues,
naufragaram os desejos.
Enleio-me em ondas
de escorbuto
E lancino gritos surdos
da alma em luto.

quarta-feira, julho 14, 2004

Faltas-me tu

(Como o ocaso esconde o sol do dia seguinte
Assim insisto em escrever história vindoura
Preencho em rima coxa a branca estirpe
Da vida coxa que em versos brancos é senhora)


Faltas-me tu
Que te desenho nas vãs palavras
Com que preencho a vertigem dos meus dias
Faltas-me tu
Que te pinto - versos metáforas
P’ra me aquecer o sem sabor das noites frias

Por isso de e por ti solto os meus prantos
Que sei só seres alvoradas casuais
Faltas-me tu
Que com versos sei, coxos ou brancos,
Escrever sentidos com sentidos desiguais!

terça-feira, julho 13, 2004

CARNE, RIO E ALVORADA

Como a carne deste poema
- Misto de sangue e nervos,
Paixão e devoção,
Rio e nascente –
Os hinos gritam ternura
Rompem as silhuetas cruzadas
De fumo e álcool, pão quente.
Em corpo faminto
Vinho novo, boca ardente.
Na esquina aflita de betão e aço,
Como pedinte extasiado,
Bebo-te e como-te.
Oca de amor
Transbordo calor.
Aquece-te e queima-te no meu regaço.

Não trago nada nas mãos;
Apenas elas.
Vou tocar-te.

quinta-feira, julho 08, 2004

Recriação

As verdades puras
Já as sabemos dizer e fazer
Perfeitas
Por isso me mascaro de mim mesma
E tu nem suspeitas

sexta-feira, julho 02, 2004

O meu tamanho

Não é por me despir que me vês nua!
Tens o olhar vestido de preconceito
E o meu peito – pequeno que é, o meu peito! –
Não o consegues ver quando dilata e se insinua.

Com a alma me acontece o mesmo, já que o que vês
Ultrapassa, do teu ver, a forma informe.
Pudesses tu ver o que me dilata, o que me consome
E nasceria inteira, nessa vez primeira!
Seria, não brasa, mas a fogueira
Onde se queima incenso insano
- Seria tua!

quinta-feira, julho 01, 2004

Da tua boca aqui

Precisava da tua boca aqui
Para me segredar os gritos que não me deram
Precisava que não tivesses esquecido os mimos
E mos lambuzasses nos ouvidos
Como poemas que não me leram

Precisava da tua boca aqui
E enchê-la da minha boca
Encharcá-la de palavras livres e loucas
Dizer-te o que nunca escrevi
Contar-te a preceito a insanidade mais sôfrega

Precisava da tua boca aqui
Para afirmar as incoerências
Torná-las suaves, semi verdades, intransparências
Anuir crédula às promessas sabendo-as efémeras
Porém eternas, molhadas de incongruências

Precisava da tua boca aqui
Para me saciar do desejo
Humedecer os entre-lábios da memória
Do hiato renascer, retomar o fio à história
E perecer no ensejo do abraço do teu beijo

Precisava da tua boca aqui
Que a reinvento de passados futuros
Como corações de giz desenhados nos muros

quarta-feira, junho 23, 2004

Algodão doce

Ensejo monogâmico dialogante
Salta nas folhas, reflecte o instante
Sabe da lauda quente que arrefece
Sabe dos infinitos
– enlouquece!
Cristalizados no desejo imperecível
De dividir o indivisível
De arrecadar os espinhos e os louros
Todos seus! Todos tesouros!

O carrossel não pára e, devagar,
Agarro o algodão doce
Antes que fosse
Perdido o tempo, gasto o momento
E ter que, já rendida, ver-te chegar

segunda-feira, junho 21, 2004

Os passarinhos fazem os ninhos...

O tempo parece não passar, no campo.
E isso serve para quê, não me dizem?
Para perceber que a grande cidade engole os minutos, sôfrega?
Por isso o design dos relógios é importante; para sabermos que, ao tempo, se muda a montra!

Os passarinhos fazem os ninhos...
Fazem os ninhos para quê, não me dizem?
Coitados, deles – dos passarinhos...
Continuam a chocar filhinhos, aos molhos
Sem saberem qual a importância do design dos relógios!...

Solstício

Rapazes nus
Cortejo de luz.
- Perfilam
Maduro mosto
Do sol no rosto.
- Saciam
No morno abraço
Deita o cansaço.
Prenhe e vencida
Saudando a vida
Destila o estio nos olhos
- A rapariga

quinta-feira, junho 17, 2004

Montagem

calar do humano o defeito
sussurrar o que vem de dentro do peito
como quem murmura do nome apenas o lume
silenciar do tom o azedume
- ah! só usar a luz do vaga-lume!
ciciar na pele os dedos
aquietar o vulto dos segredos
trautear das músicas os glissandos
rumorejar feito leito de oceanos
segredar cascatas
sibilar regatas
zarpar por esses mares sem ler planos

segmentos breves
cerzidos como rendas – leves, leves!
fluxos entrecortados
como fotogramas desfocados
perfilados na memória de flanela
animados pela vontade feito tela

e o filme projecta perfeito
o sonho que teima em bater no peito

segunda-feira, junho 14, 2004

A viagem

Olhar para dentro e ver o mar;
Soltar a jangada e não ancorar.
Que, a viagem?...
Faz-se sem tempo!
O sem limite é ter o mar por dentro
E navegar...

terça-feira, junho 08, 2004

PERSONA

Lamento
A maquinaria do ciúme, mas
Saboreio
O licor que ele segrega.
Invento a revolta.
Sento-me nesse banco de tristeza e
Desfruto
O prazer de me sentir só.
Sou louca!
Inventei-te para me martirizar e
Cumpro
A punição que não mereço
Para me ilibar
Do amor que
Não sinto.
Reconheço a máscara do artista e
Prossigo
Na representação.
Espero conseguir deitar-me
Satisfeita e farta e
Ter tempo
Para me aplaudir
Na última cena.

segunda-feira, junho 07, 2004

Dois hemisférios

Os braços largados ao longo do tronco
Em descompasso, o ritmo das pernas
Ideais adiados,
desistência,
malogro
Engenho automático que inibe quimeras
Aventura adiada,
simulacro,
enfado
Rapsódia de vícios em palco de guerras
Supera-se o ritmo de binário a ternário
O jazz
Em tensão
Cruza notas no espaço
Refracta-se o som
Perdeu-se o abraço
em partículas insanas
reais adultérios

Desmembra-se o ser em dois hemisférios

domingo, junho 06, 2004

'Tão?

Fiquei colada nas lanchas dos pescadores. Ora, que grande novidade! Quem tem a beira da praia por meias, dificilmente habitua os pés a sapatos ou palmilha, de ténis, montanhas.
Os pescadores lançam os «'tão?» naquele meneio de cabeça, entre o hirto e o desconforme, porque o hábito de carregar aos ombros as redes lhes tornou os músculos tensos e os seus gestos formam peça inteira de torso, pescoço e olhar.
«'tão?», devolvemos, repetindo o ritual da saudação que, embora a inflexão monossilábica se cante entre o registo de pergunta e exclamação, tacitamente sabemos não carecer resposta. O cumprimento é assim a coisa mais parecida com o polido «how do you do?», seguido do «how do you do?», já que ninguém se interessa em saber como realmente vai o outro, ou como se sente o outro, ou sequer o que faria com a resposta do outro, caso ao outro lhe desse para responder.
«'tão?», como o som que uma onda mais forte faz contra o casco dos barcos. Previsível cacofonia do mar na boca, que a tendência é repetir-se o que mais se ouve. Grava-se na mente os sons da praia, como à pele se cola o cheiro a sal e se desbota a cor da alma!
Como é fácil reconhecer os pescadores!? Há neles um silêncio de palavras, que verbo é o mar! E uma postura intemporal, como parda se torna a tez fustigada de sol e sal.
Deles sei o que deles tenho: a certeza de saber que o mar é novo todos os dias, mesmo quando a lua se nega a pendurar-se no breu desse outro mar, que é o céu. Deles sei as ânsias e os medos, como se guardam os segredos que revolvemos com os pés na fina areia.
Estou sentada na escarpa da rocha e canto ao cheiro do peixe fresco. Não me mexo. É a brisa que me vem agitar os membros e é esse movimento que, não sendo meu, me notam.
«'tão?» - fala por mim a rocha, olhando as lanchas na água, salpicadas de gaivotas. E adentro o mar...

sexta-feira, junho 04, 2004

O longe
ao perto
fica tão pequeno!

quarta-feira, junho 02, 2004

Porque eu gosto

Doem-me os lábios de tanto beijar
Porque eu gosto
O carvão da boca a tatuar palavras
Pelo teu corpo, meu mural
A língua lenta a desenhar frases sem sentido
Pinga, esborrata
Invade a folha da pele
Sulquei a carvão as sombras da vontade
Graffiti expondo gritos pela cidade
E escrevo beijos
Preencho desejos
Porque eu gosto
Vão caiar o muro do teu corpo
E eu não gosto
De novo branca a folha da pele
Os poros sufocados pela cal
Os filamentos da turfa asfixiados
Sei onde os gravei
Quase os mostro
Entaiparam-te os beijos marcados
Com painéis por todos os lados
Mas eu vejo-os
E desejo-os
Porque eu gosto

EVA MULHER

Esses teus olhos indiscretos
Tão cheios de malícia incontrita
Fome e sede de maçãs proibidas
Lembram-me a eva que não sou
Mas a serpente que envenena
Do adão que habita em mim
Ficou-me preso o caroço
Das palavras o peso
Que sufoco
Olhas-me inquisidoramente
Sedento do amor inexplicado
Faminto da mágoa em que me banho
Inundas-me de amor
E eu chafurdo em pecado

E adormeço feliz
Neste corpo podre de eva

terça-feira, maio 25, 2004

Umbigo

Na palma da tua mão cabe um mundo
O tempo inteiro compactado num segundo
Ver-te chegar é repetir os passos
Ir do presente ao presente
Estar ciente
De arrecadares de ti para ti todos os abraços
Narciso em incesto
Deitas-te na folha
Frente e verso
Reflexo do amplexo
Umbigo do excesso
Criação que não perdoa
Na dádiva a retro pessoa

segunda-feira, maio 24, 2004

Poema triste

Hoje é dia de poema triste.
Demora-se o inverno.
Tudo o resto é solidão e desespero.
Nada mais existe.
A promessa de vida esgota-se no eco.
A alma às pregas, como dunas num deserto.
Estilhaços do que há-de ser varrem o chão.
Estranha calma em que o caos persiste.
A quietude que ensurdece após o trovão.

NA PEDRA DO PORTO

Os bancos de areia
Que aconchegavam as marés
Mudaram-se para aquela praia
De ventos calmos
E cheiro a maresia de gaivotas.
As ondas agigantaram e deram à costa
Esmaecido o azul e em branco a espuma.
Que todas as tempestades
Conheçam agora calmaria.
Molho os pés nessa água lavada
E das conchas que semeio
Seleccionei as mais puras em forma e cor
Para te fazer um colar.
Nele encontrarás
Mar e areia
Cheiro húmido a sal
Canções de pássaros pescadores.
Usa-o
Sempre que te sintas perdido
Num caos de gente
Sempre que procures
Um cais de pessoas.

Eu estou na pedra do porto
Aceno-te amizade

quinta-feira, maio 20, 2004

ONDAS

Parto para a longa viagem
Rumo sempre ao cais de maresia
Euforia em cascatas de sargaços
Ritmadas pelo sabor a agonia.

Este mar que me engravida de lua
Enche-me de areia e sal; as redes rotas.
As barcaças estão na costa, breve rua
Onde vagueio – qual gaivota! -; as mãos soltas.

Olham-me marinheiros de águas doces
Sagazes dos ventos que me dilatam.
De pouco me serve o rio; secam-se as fontes

E já os sóis poentes me maltratam.
As sereias, já só habitam os montes
E as musas, é sem dó que as escorraçam.

terça-feira, maio 18, 2004

Borboleta

Rasgar o silêncio no bater da pálpebra
Romper-lhe os fios e estragar-lhe a seda
Devorar a ninfa...

Decompor os sons no ritmo da asa
Confundir-lhe a escala e ensurdecer-lhe a pauta
Devorar a lira...

Só poisar no pólen e reclamar-lhe o sol
Pisar-lhe a flor e roubar-lhe o éter
Devorar o néctar...

Revolver paixões no lago da íris
Tingir-lhe a cor e poluir-lhe a tinta
Devorar a escrita...

Ser borboleta escondida em larva
Prender-lhe o voo e destruir-lhe a meta
Devorar o poeta...

domingo, maio 16, 2004

ESPERA

Quando a espera se instala
tudo tarda
Até a eternidade
hesita aproximar qualquer verdade
Ao quotidiano oculto em espera
de longe
chegam ecos do que é cíclico
até o vício se esquecer
que se fez homem
Molda-se o tempo
em compassos ternários
entre risos, frases soltas e abraços
O turbilhão imenso
imerso em calma
tinge de branco mácula os cabelos da alma
O choro surdo da negação
da vontade
a autonomia no gesto
que se fez tarde
tudo se avulta em corredores de memória
O tempo a crivo
reclamando o não vivido
Já sem espaço
apenas sonho; vazio o regaço
Grito mudo a soprar no vento
desgaste, lamento
embuste, saudade
A espera é cais de mau porte
abrigo podre
e ainda um dia se faz tarde

sexta-feira, maio 14, 2004

Pentamento

O antes e o agora deitados na tela
na tinta da escrita que tudo revela

quarta-feira, maio 12, 2004

Búzio

Escrever búzio e ver o mar...
Olhar-te do meu pinheiro
Sentir-te a divagar

Escrever e não ver búzio, não divagar
Para quê o teu olhar?
Se não vê mar...

Lágrima


sal

p
i
c
o
s

colados
na lente
engrossam
em gotas
escorrem
no olhar
O
o
.

gotejam
engrossam
abraçam
o rio
que escorre
p’ro mar
O
o
.

terça-feira, maio 11, 2004

Luar

não
se desnude
o luar
não
danço
envolta
no sol
na luz
refractada
deitada
no espelho
da água

segunda-feira, maio 10, 2004

Kinasa II

Memória
Fragmentada
Magnificada
Distorcida pelo tempo
Do restauro apenas jeito
Pois que me vive no peito
Em constante desdobramento
A que obedece
A que se oferece
A que não verga
A que se entrega
Apelando a emoções que não tenho
Renego-lhe o seu tamanho
Redimensiono
Não acrescento

WORKSHOPS

Escanção de vinhos, palavras e outros filtros no CCB
Meneio e macramé a quatro mãos no BBC
Helenochillout na Kapital
Frigideiras e outras mornas no Tarrafal
Morfeumas e outras fleumas no Coliseu
Dança do ventre e pliés sem dedos no Ateneu
Pegas de caras e pegas baratas na Forcados e Arena
Monociclismo sem selim na Teorema
Contorcionismo e bangee jumping na música de Brahms no Goethes Institut
Granadismo esotérico do IRA no British Institute
Loopings feiro-populares na Câmara dos Horrores
Escalpe e outras técnicas de bisturi dos media na SPA
Zangões e abelhas versus vespas e outros aselhas no Jardim Botânico
Frame ou o frémito da moldura nas obras de Dali na ARCO
Quiro e pirotécnicas no Chapitô
Serenatas coimbrãs, sapos e rãs – a essa é que eu não vou!
Cadernos, dossiers e pasquins na Papelaria Fernandes
Plásticas camonianas na tradução contemporânea no Instituto de Cervantes
Literatura pró-socialista II no Tokio
Serradura e MDF na elaboração do Pinóquio

domingo, maio 09, 2004

Prece Magna, quase Aula ou Olha pó-quemedeu

Como se não tivesse amanhã.
Chamada iúrdica, convoca todos os ácaros à oração
Contribua com seu dízimo e se liberte de todos seus pecados
Provocando a alergia que deve, todos os dias
Queremos todos os humanos infetados
Queremos todas as primaveras destruídas
Como se não tivesse amanhã.
Façamos cafuné nas pituitárias e nas glotes
Para que mais ninguém diga coisa com coisa
E todos os humanos comungando o imenso espirro
Que se propaga no templo universal da rinite esdrúxula
Como se não tivesse amanhã.
Dizimem-se todos os colchões de látex!
Todos os aspiradores a vapor!
Todos os inimigos figadais de nossa causa!
Como se não tivesse amanhã.
Levantemos as patas num gesto de união
E façamos uma enorme corrente de solidariedade
Para com nossos irmãos na fé do pó
Que perecem cozidos no vapor, trucidados às mãos
De uma qualquer mulher de lenço na cabeça,
provavelmente ucraniana
Alargue-se a fé, dilate-se o reino do pó
pó-de-arroz
pó-descrer
pó-caralho
pó-raioquetaparta
pó-desseguir
Como se não tivesse amanhã.
Eletrizemos no ataque epilético da alucinação coletiva
Histerizemos no grito de alforria transformado em prece
Cortemos as veias na imersão da asma
Sejamos plasma, retroprojetor
Imagem de claustrofobia em terror
Que se exploda o mundo e todo seu redor
Como se não tivesse amanhã.


Ácaro na moral.
Como se não tivesse amanhã.

sexta-feira, maio 07, 2004

Louros

O facho aceso na pira do génio
Timidamente erguido
Protegido pelas mãos em concha
Levado em passo determinado
Que o cuidado também conta!
Lesto na corrida do tempo
A iluminar a vontade
A perpetuar o momento
A derramar luz sobre nós
A entrar na nossa vida
A provar que a criação é infinita
A deixar-me o embargo na voz

quinta-feira, maio 06, 2004

Ilusão de óptica

Quem quer saber da minha alma !?
Por ventura alguém pára,
alguém espera para ver
o que se deve ao engenho,
o que se deve à arte de viver ?!
Como se nada me abalasse,
como se em mim não tivesse
a fraqueza de me partir toda,
de me desmembrar inteira,
como os outros!?
Recusam-me os desgostos ?!
Aligeiram-me a maneira !?
Ter, do levantar, aprendido o gesto,
fez de mim vencedora ?!
Continuo vencida,
caída no tapete da vida.
Do corpo, vêem-me a carne;
da alma, apenas a parte
que brilha, que voa, que arde!
Em mim não vêem pessoa,
que sofre, que ama, que sonha!...
No gesto, apenas coragem;
da arte, apenas aragem!
Que o âmago guardo para mim!
Reservo-me até ao fim,
até que preste o encontro,
até que morra no assombro,
até que fuja de mim!

outra vez

guardar no baú o linho tecido
embrulhá-lo com jeito, atá-lo em carinho
lavá-lo das nódoas, arquivar-lhe as provas
esquecer-lhe o fedor, espargir novo odor
desenhar na memória, só a nova forma
como quem se desmonta
tira peças da alma
ignora o torto, sacode o defeito
limpa de dores o peito
rasgando o sorriso, reabraça a calma
lima-se o diamante, leva-se a arte avante
sabendo que o tempo
na velocidade do vento
desgasta o efeito da pedra no peito

amar o amor que não se fez
renovar o desejo, nascer no ensejo
de se dar livre outra vez

quarta-feira, maio 05, 2004

Desejo de infinito

É no sonho que me espreguiço
Alongo as asas e espraio o olhar
Sei de infinitos atrás de infinitos
Sei que me encontro nos sonhos prescritos
Nos acordes da luz, no apelo do mar
Sereno o peito nos lábios do vento
Sei quando paro, de costas no tempo
Por isso sorrio
Por isso lamento
Insisto no sonho – só quero planar!...

terça-feira, maio 04, 2004

Não!

Fumar Mata
Não Fumar Mata
Viver Mata
Não Viver Mata
Amar Mata
Não Amar Mata
Viver Mata
Não Viver Mata
Escrever Mata
Não escrever Mata
Viver Mata
Não Viver Mata
Cantar Mata
Não Cantar Mata
Viver Mata
Não Viver Mata
Falar Mata
Não Falar Mata
Viver Mata
Não Viver Mata

Não Viver
Não!
Mata!

sábado, maio 01, 2004

Ritual da saudação

O cuco não cantou desta vez
Inibiu-se o seu canto
As rosas não floriram desta vez
Explodiram no bolbo
Dir-se-ia que o tempo não deu tempo, desta vez
Que, indiferente, a natureza esqueceu o ritual
Parece-me tudo inverno desta vez
Como se a renovação fosse adiada
Para maios remotos
Onde os cucos cantavam
E as rosas floriam
E se saudava maio em cada vez

quinta-feira, abril 29, 2004

aunque no tengas ganas

Abraça-me
esta noite, que se prolonga o vazio e o poema, quando fala, não preenche o silêncio ensurdecedor da tua ausência.
Sacode-me
o frio, abraça-me como se mergulhasse no turquesa caribeño e me esquecesse do arrepio da pele.
Envolve-me
como se não tivesse corpo e me dissolvesse no tépido do líquido.
Curva-te
sobre mim, como as palmeiras nas dunas da margem se enrolam na brisa quente a simular o teu abraço.
Enche-me
do teu hálito, como o jasmim à noite a libertar incensos do sol que o aqueceu.
Unge-me
com o teu perfume, como o faz a maresia quando encharca a areia.
Acorda
a vontade e simula que me afagas, como quem tem por missão desdobrar-se e aplacar as dores do mundo, tomando-as por suas.
Escorraça
o vazio e o frio e oferta-me paraísos toldados de púrpuras e atapetados de pétalas carnudas.
Abraça-me
esta noite, em carácter de urgência, que será a primeira de muitas últimas em derrames líquidos de mornos turquesa.

quarta-feira, abril 28, 2004

CORPOS - 6

Silicone

O corpo anúncio,
Embalado em papel de seda
Que o natural é coisa que não chega
Fitas festivas, pareos de nativas
Meneios sinuosos, ou másculas investidas
Fat free, soft skin, paraísos em formas light
Tipo cool, que o mundo é em outra parte
Arquitecturas de costureiro, em gazes de nevoeiro
Construções idílicas a lembrar odaliscas
Andróginos nos carros, nas casas, nos cheiros
Compromissos egoístas, bem na capa de revistas
Emersões em espuma zen, de braço dado com o Ken
Que as Barbies já sabem ler, só não sabem como o fazer
Design a pintar contornos, na inutilidade dos corpos
O in em out num segundo, bem na velocidade do mundo

terça-feira, abril 27, 2004

CORPOS - 5

Ópio

O corpo vício, sempre em bulício
No bar, na cama, em comício
Dança a dois, agulha e loucura
No beijo, em desejo, nunca em ternura
No estio, no frio, sempre em cio
Em viagem, alucinante e frágil, mas só de passagem
Lençol de formol , ataque de colesterol
Na gargalhada, na felicidade emprestada
No limiar do tudo, na negação do nada
No beat, no lap, no crunch, no chlep chlep
Na night, no fado, no azar da roulette
Santuário do terço, infinito a qualquer preço
No ter e dever, na incapacidade do ser

CORPOS - 4

Vaso

O corpo enfermo, que envelhece
Pasto de doenças, apodrece
Proliferação de cãs
Pioneiros no ocaso
Dessincronias ferozes
Galopando o tempo, velozes
Fragmentos a lembrar o puzzle
No pó do barro, a marca do vaso
Cumprido o tempo, acabado o prazo
O relógio que avança, sem atraso
Resquícios inteiros na fachada
Da arquitectura em derrocada

segunda-feira, abril 26, 2004

CORPOS - 3

Soldado

O corpo de serviço, carne para canhão
- engodo
Aprumos de farda, ballet de batalha
Mais um de entre mil, no redil
- logro
E no antro civil, se aguarda
Marchando sem cravos, cumprindo outros fados
Serviço imposto, não seu compromisso
Não sua a insígnia espetada no peito
Não sua a bandeira, nem bota, nem arma
A pólvora no rosto, as balas no riso
Levam-lhe o corpo, que abana, chocalha
Silêncio, que o vento
Em sofrimento se cala
Empasta-lhe o sangue, que gela, que pára
Sua a lembrança
Não o orgulho, nenhuma a esperança
De voltar um dia, vencida a agonia
Esquecidos os corpos, nus, rasgados, mortos
Ceifou-se uma vida, num clique, num ápice!
Que a pátria o lamente, as honras lhe empreste
Se limpe seu nome com lágrimas na lápide

O corpo é quem parte - invólucro, descarte
A memória renega, soldado, entregar-te!

CORPOS - 2

Hálito

O corpo instrumento
De línguas em esperanto
Veículo de linguagens
Tradutor de imagens
Guia a soldo a acompanhar viagens
O ar em movimento
Vibra nas cordas o canto
Decide na fala
O pensamento que exala
O ar que circula
Em vaivém etéreo
Devolve o mistério
Alheio à vontade
Esquecido da arte
Insufla de vida
Retarda quem parte
A alma sentada, descansa em esplanada
Observando-lhe a carne - sem apetite que a salve!

CORPOS - 1

Algemas

O corpo sem alma, enfarta!
Os olhos sem vida, sem viço
empurram para o precipício
algemam ao breu, ao frio
albergam apenas vazio.
Os nervos aniquilados
por beijos presos nas bocas
mãos sem carícia, só cio
como teclas num corrupio
tocadas em concerto de loucos!
Longe, o sentir que define
o ser mais alto, sublime!
Desejo amputado, partido, rasgado
trucidado na ponta do prego
transforma o sonho em inferno!
Esgar amargo, que oprime
mancha a verdade, suprime!
Sem que a criança, a sorrir
brincando lesta em porvir
desenhe Baco a dormir
e no gesto livre o redima.

sexta-feira, abril 23, 2004

represa

dormência em limbo
nirvana
presa no zipper da pálpebra
demência que vem
profana
rouba os gritos à alma
o corpo imóvel
em ondas
cúmplice
- a marulhar silêncios

demência em dormência
que se prorroga
na represa do leito
- a pôr-me à prova

quinta-feira, abril 22, 2004

Na tua retina

Olha-me com tudo o que dei
Consegues?
Vês-me sem ti aos ombros - referes
Mira-me para lá do espelho
Desembaraça os fios ao novelo
Na retina dos teus olhos apenas me vejo metade
Apenas os voos, a arte
Apenas os sonhos - amar-te
Reténs somente o que deixo
O que solto abaixo do queixo
O ninho da cegonha eu tapo
O voo da garça destrato
Ver-me inteira na tua retina
Seria regressar à menina
Oferecer-me em altar de Baco
Fingindo que não me importo
Que o sofrimento aborto
Que só sei ficar - já não parto!

terça-feira, abril 20, 2004

20.04.2004

dia.bom.diabom

na gaguez da repetição
no juizado da reflexão
redondo ao quadrado
múltiplo de si próprio
exacerbado
em espaço infinito
equidistante no paralelo
binómio no contínuo sem pausas
aos pares - como as aves com asas

segunda-feira, abril 19, 2004

Garraiada

Sem arena, sem barreiras
Largada desenfreada
Rompe o peito em disparada
Massa humana desembestada
Sem resguardo de fronteiras
Ulula, proclama - já arde, inflama
Corre em rajada - o tudo ou o nada
Lambe as bancadas - são já fogueiras
E soa a trombeta na boca da sorte
Em tormento andarás até ao derrote
Mistura-se o sangue quente em papoulas
As chocas ladeiam - pardas lantejoulas
Ébrios requebros, demência em manada
Olés e vivas - aguardam estocada
Aficións improvisadas
Adrenalinas, mas mal filtradas
Cegas pela luz, pelo movimento
Aclamam sangue, horror, tormento!
Investe no alvo, focado em cegueira
Como o instinto do escorpião no touro
Que não sabe o que o move
Não vê o que o consome
E na fogueira deita fogo
Pelo impulso, pelo momento
Diz-se livre, solto - do vento
Guerreiro, peão
Frágil, portento
Mas sua natureza depressa o devolve
Onde o ballet
Onde o bolero
O pasodoble do vem cá que eu quero?
Onde a arte, o fundir na dança
A lide redonda dos corpos em graça?
Frenesim do desespero
O sol queimando, o pó nas gargantas
Mas a festa?
Essa o envolve
Essa o liberta e consome
Essa, que dure até às tantas!

Anti-clímax platónico

Sangue e nervos
Carne e medos
Palavras que bastam
E nem na rima se desgastam

Dizem que o amor se alimenta de amor
E de carne!
Que também ele arde!...

Estou aqui

Em estado de graça
Seja por ti?
Que seja
Vem, me enlaça
Estou aqui, nunca fugi
Apenas o tempo por mim perpassa
Ainda que os poemas me vigies
Mesmo que as palavras me elogies
És tu quem não fica
És tu quem não sabe
És tu quem passa
Quero o peito cheio, feito taça!
A derramar, a transbordar
A revolver a aridez
A voar, feito garça!

domingo, abril 18, 2004

O tempo

O tempo enovelado
Sem ponta de princípio nem passado
Só chegada
Despenteado
Sem banho tomado
Em sóis e luas emaranhado

Movimento que se adivinha
Se recria solto
Ou suspenso, gavinha
Liberto sempre
Sempre veloz
Na quietude
Ao meu lado

sexta-feira, abril 16, 2004

De trás para a frente

Em directo
sobre o momento
poiso as garras e grito ao vento
encandeada pelos flashes
pela babel
pelo tropel do desalento
Herança que iço em haste
recobro o grito:
vocifero
que baste!
Ah, veia que te dilatas
corres veloz
já me maltratas
Onde houver o grito
eu estou
Onde houver a prece
eu vou
Pudesse eu pegar-te
sossegar-te
dar-te tudo em forma de arte!
Não teria sido vão o momento
não teria a esperança partido cedo
não teria sido debalde amar-te!

quinta-feira, abril 15, 2004

CONDENADA A SER LIVRE

Salinei desertos de culto
Areei oceanos em luto
E rasguei farrapos de céu - que é o mesmo
Do sonho enxuto um recado p'ra dependurar em toldo
- Tragam-me um vento arguto e manhãs grávidas de tudo
Me saiba a mosto a farta seiva
Do mar que aqui longe já não me banha
Corro a untar-me de óleos de guerra
P'ra escorraçar ociosos os tempos de espera
Fujo correndo
E já só fico onde longe chego

lábio inferior

ao iceberg parto-lhe lascas
mas das azuis
e coloro com esse gelo o gin do meu desespero
visto o negro
não como o usam as mulheres dos pescadores
mas as amantes!
- adivinhando a chegada dos barcos, farejando-lhes as artes
porque eu
eu vivo sentada
mas no lábio inferior
conheço os cheiros do mar
sei qual o seu sabor

Teu colo

Fora de controlo
Necessidade urgente de colo
Não de colos - do teu colo
Fogo fátuo, chama que se espalha e que mata
Riscar de fósforo imediata, que nasce na cabeça e logo alastra
Estocada em palavras - nefastas, vagabundas, elásticas
Espreguiçar dentro de corpos, alastrar p'ra lá dos portos
Ritmo espacial - que faz mal - já não me queixo
Vai e vem, vem e vai, demora-te - que eu deixo
Boca aberta, suor que liberta
Rodopio de baloiço, sentimento em alvoroço
Imersão morna que logo se transforma
Em estrépito de golfadas - correr em rajadas
Disparada em galope, a rasgar esplanadas
Dá-me a mão, não peças nada
Sou poalha que se esvai - sou quase nada
Fragmentos dispersos, gemidos soltos nos teus convexos
Endemoninhados em tropel no pó da estrada

quarta-feira, abril 14, 2004

Thálassa! Thálassa!

O
o
.
soltei-te thálassa
deixei as tuas mãos-água
percorrer...
escorrer...
O
o
.
até me submergir a alma
estou anémona... alga
sou limo
a escorrer...
O
o
.
estou no limbo
por escrever...
O
o
.
.

segunda-feira, abril 12, 2004

Encruzilhadas de mim

Quem por mim passa, sempre arranca um pedaço
E me deixa leve, cheia de rosas no regaço
Retalhada, como a capa de um estudante,
O meu corpo conta histórias, troca histórias
Sobram livros por narrar, todas elas de encantar!
E volto ao mesmo ponto da estrada
Renovada, nova bicada
E como a cicatriz regenera o uno
Assim eu me ofereço nova, maior
Para pecado bem melhor!

Só quem morre em cada entrega
Recebe a vida - não a nega
Renova o norte, a sorte
Dilata, cresce, navega!

Se fosse...

... pronome, demonstrativo
... verbo, transitivo
... animal, ave
marinha
sem tecto
só descansar na escarpa da rocha

sexta-feira, abril 09, 2004

rip rap

o rip rap rápido
de olhar e fazer

troca no rip rap
de fazer e olhar

rap
agonia, apaga-se a luz

rip
o vazio, pregado na cruz

| repeat | não sabem o que fazem

quinta-feira, abril 08, 2004

TALVEZ

Talvez
fosse mais fácil
erguer barricadas de fumo em luzes rosa ou madrepérola
polvilhar de sons acre e cheiros de colónias frescas
este bar qualquer de qualquer doca
só para se dizer que se está com a corrente estética
e que se é perito em não-sei-quê que os outros não
Talvez
não tivesse nenhuma piada
reconhecermo-nos na forma que temos
sem desejar o além que não nos encerra
como insistir em pintar de cores berrantes
um qualquer quadro que não vendemos
Talvez que até não fosse chato
sermos iguais aos outros a escolher gravatas
a arrumar na arca projectos infecundados e só escrever prosas flácidas
e embrulhar em alfazema o linho que hoje tecemos
com medo de fiar comida para traças
Talvez
até fosse correcto
beber maresia a horas certas pelo medo de congestões
falar dos outros invejando-lhes o ócio de fazer nada
e adormecer regalados de tanto cansaço
por enquanto não é mau pensar bem e pensar mal de tudo
é um luxo pouco dispendioso e fica-me bem com a cor dos olhos
acho mesmo que não me quero espreguiçar sem fazer barulho
ou não mascar pastilha elástica só por causa dos dentes
Talvez
fosse mesmo mais fácil
se não fossemos poetas - deve ser isso
entretanto levantamos as saias e saltamos riachos
e fazemos amor-na-praça-pública sem salas de cinema
porque não tomamos o mundo em doses a pensar na linha
entretanto aqui não se faz tarde
ainda temos tinta e vontade suficientes para nos limparmos
das teias que não deixámos segregar
por enquanto
Talvez
não fosse patético
continuar a intentar poemas
e deixar a seiva das palavras inundar os odres
das cavernas que a vida lentamente nos ocou

quarta-feira, abril 07, 2004

O grito

Exorcizar dando a mão à loucura de Erasmo
Confessar que se viveu, como Neruda
Reabrir a boca, na alegria do pasmo
Fiar memórias sem pudor, desnuda

... o grito

Sentar-se à mesa em banquete, com Platão
Mimetizar a essência, pela mão de Coleridge
Silenciar o desencanto que se afaga com a mão
Repescar passados e relançá-los no hoje

... o grito

Embrulhar em poesia as razões de Kant
Desconfiar do que resultou da crença de Nitzsche
Lançar os passos e os braços p'ra universo mais distante
Não encontrar o seu nome apenas na estatística

... o grito

Voar longitudes desenhando futuros com Da Vinci
Sonhar-se heterónimo, plural, sinónimo - capice?
Reerguer-se na dúvida se será Ecce Omo
Requebrar-se no samba e redobrar no polinómio

... o grito

Deitada, projectar velocidades quânticas
Pedir dos outros sabedorias tântricas
Renascer na surpresa da vontade ancorada
De querer tudo, mas saber nada

... o grito


O grito que me leva ao grito
É o mesmo grito que me leva ao torpor
E me envolve em torpor
Sempre que de novo se solta o grito

segunda-feira, abril 05, 2004

snap-shot

imagens disparadas em flASHes
como rajadas de m.e.t.r.a.l.h.a.d.o.r.a
rotação de câmara e CLOse-up no corte da carne
na gota de sangue que engroSSA
escorre no ecrã, avassala, invade
e eu sem força
gesto|preso|no|enfarte|fecho|os|olhos|
barro a entrada \|
mas as imagens perpetuam-se
ALASTRAM no som e trespassam os ouvidos
enfiam-me os dedos, cérebro adentro, ALASTRAM, devassam
nos olhos, o sangue, contraído_pelo_aperto_das_pálpebras_
irrompe, invade, engrossa
escorre em ritmo de CATar at a
e imparável, indomável, inunda-me o peito
violação dos sentidos
estou em charco
já sou poça

(para quando Ressurreição?)

Flechar morangos

morango de abril
a vida em esplanada
vermelho que tinge os dentes na dentada

o morango cravo
sentado na gê três
o branco da garça sobrevoa o menino - não vês?

domingo, abril 04, 2004

Beijaflor no meu umbigo

(free your heart; your eyes will follow)

os olhos rasos de sol
a língua encharcada de sal
quero-te na ponta dos meus dedos
inteiro
... e derramar

sábado, abril 03, 2004

Pacote

Fim de semana para duas pessoas, tudo incluído, porque eu mereço
Corpos danone, porque branco mais branco não há
Às quatro e meia, na hora light, porque size matters
E faz poc, como se tivesse sido acabadinho de colher da horta
E ainda dizem que boch não é brom
Devolve-nos à infância, aquele cheirinho da roupa acabada de lavar
E quando você se sente belo, acham-no mais belo
Esta semana, a vida reservou-lhe um jackpot
Uns têm, outros não
Faça-se o que se fizer, vá-se para fora, cá dentro
A quem me visita, o sol da minha simpatia
Porque eu quero consumir
Porque eu mereço

sexta-feira, abril 02, 2004

Fading

Insolente irrompe o mar num grito de expressão
Em policromias de movimento e imensidão
A revolver gradações de azul, que julga suas
Ignorando-se filtro de luz, espelho de luas
Espreguiça-se sobre a areia e empurra o céu com as costas
Sacode a espuma e suas mãos são rotas
Rebola e serpenteia, redemoinha a fina areia
Impávida e altaneira a rocha a tudo assiste
Sagaz - como padrão em forma de cruz
Sabe que o vai e vem é tudo o que existe
Sabe que o tempo tudo produz
Tantas marés por si passaram
Tantos destinos lá se afogaram
Só a esperança dos homens ainda persiste
Em recriar céus de luas cheias
Pejados de sereias a brilhar na luz
E o ritual das ondas vem chibatar a rocha
Desmesurado ímpeto de água em vem
Para logo em desmaio recuar, água em vai
Infligindo gemidos a cada investida
A gargalhar cascatas na rocha destemida
Arrepio dulcíssimo num fio de tempo
Solto em tropel, preso em momento
Como as mediterrâneas falésias ajoujadas
Em exuberâncias de sal - gordas e fartas

O sol em ocaso a mergulhar no mar, em grande plano
E a acender-se em alvorada no meu oceano

quinta-feira, abril 01, 2004

Tábuas

Não maquilharás comportamentos
Não tomarás a vida em doses recomendadas
Não te darás na proporção da capacidade do outro
Não terás pudores
Não te darás em formato de esmola
Não definharás parando na projecção
Não usurparás sentimentos
Não aceitarás menoridades
Não renunciarás ao desafio
Não te perderás na babilónia

quarta-feira, março 31, 2004

SAUDADE


Saudade
Feres
Os nervos tensos
Dedilhas
No meu peito
O grito
Aflito
De
Um ventre
Infecundo
Sufoco
O sonho
Frágil
Lapida
A minha noite
Em dia

terça-feira, março 30, 2004

É O MEDO PRECISO


É
É preciso
É preciso vencer
É preciso vencer o medo
É
É vencer
É vencer o medo
É vencer o medo preciso
É
É o medo
É preciso o medo
É preciso o medo vencer
É
É vencer
É medo vencer
É medo vencer o preciso
É?
É preciso?
É preciso vencer?
É preciso vencer o medo?
Medo?
É preciso medo?
É preciso vencer o medo?
É?
É?
É?
É o medo.
É o medo preciso.

Whirlpool


Apoderou-se de mim um frenesim de - Mais! Quero mais!
Um pulo para a frente, logo outro para trás.
Movimento. Rotação. Espiral.
Sinto germinar um novo momento.
Começou a fermentar.
É a vida, sem pedir licença, a teimar entrar.
Cumpre-se a teoria do tempo;
O eterno retorno em movimento.
A rotação a gerar espirais de – Mais! Quero mais!
Bacanal dos sentidos sem pudor
Momento para reamar o amor
Redescobrir o bem de iluminar. Vem, me acende!
Me leva e me traz!
Tentação da vertigem, arrepio de 40 graus
Ritmos num tropel de carnaval
E a alma que grita – Não faz mal! Não faz mal!
Respiração suspensa no dilema
Lábios na avidez do beijo penitente
Na premência do abraço urgente
Caminhar desesperada e nua
Em refluxo de fantasias exóticas
No trópico da alucinação
Sovada pela estridência dos gritos de gaivotas.
Se as almas se encerrassem no limite dos corpos
Como poderia demorar a minha mão numa tua curva, a mais bonita?
Como poderia derramar-me sobre ti, na acalmia que sucede ao torpor?
Aplacar-te pelo peso do etéreo
Alma perlada de suor
Soterrada pela magnitude do efémero?

Estava sozinha e na cabeça só ouvia sirenes;
não havia nenhuma a tocar, mas é o medo que nos faz inventar alertas
É questão de permitir o desejo de desejar
Custa-me o gesto de escorraçar o dilema
Sopram-me ao ouvido memórias do que é sofrer
Fiquei presa no gesto já esquecido
De deixar o êxtase escorrer.