.................OU SEJA, UMA CONCORDÂNCIA IDEOLÓGICA....................................................................................................

sábado, abril 30, 2005

Circunstância

Pouco importa
Se a lua se derrama sobre
As coisas
Ou se os peixes da memória
Formam correntes
Somos esta circunstância
Um quase nada
Um hiato na linguagem
Um átomo a mais nesta paisagem
Uma viagem sem regresso
Um esquecimento

terça-feira, abril 26, 2005

De quando em quando

Nada me pertence
Que me reclame
Entre o vão do tempo
E o sopé do espaço
O meu desenho
Desfaz o laço
A nada pertenço
Que me prenda ao mando
Só questões e dúvidas
Nada de permutas
Suspensas do braço
E as respostas francas
São só nuvens brancas
Suspensas no céu
Lá de quando em quando

domingo, abril 24, 2005

oh meu amor

oh meu amor
com que mãos te tocar
eu sei nada
nada basta eu sei oh
tocar as mãos
oh nada
basta meu amor

oh palavras
não direi amor
saberás oh
gestos nas mãos
oh nada
basta meu amor
tocar palavras

sexta-feira, abril 22, 2005

Não é fácil morrer com método (V)


Face It by artofgold


Não se prescreviam lobotomias para casos limite daquele tipo. Isabel, revolvendo ponderações, não conseguia vislumbrar em que pontos viciados se detivera, em que intrincados meandros se tinha enleado; apenas sabia que não queria para si aquele estado alienado de profusão de humores instáveis que faziam antever a loucura.

As árvores da minha infância
Exibiam uma profusão de pássaros
Que nunca mais alcancei
Havia uma asa que os lembrava
Quando da primeira vez te encontrei
Quis retrazer esses pássaros
Pousei na árvore e tombei


O limiar da dor, quando ultrapassado, despoletava em cadeia reacções ilógicas com laivos de sobrevivência. Fremiam nela as oscilações instáveis da desistência. Prometia-se controlá-las, mas sentia-se incapaz. Os contratos que se tinha contraído eram desonrados vezes demais. O tempo, aparentemente ganho com os seus discorreres lógicos, caíam no segundo exacto em que dele chegavam notícias. Ele transformara-se no magnete que atraía todos os elementos da sua vida - «O amor derrama-se em tudo, enquanto o amor tudo derrama.». Parecia que tudo voltava ao início; que em cada novo momento se renovava uma esperança, mas intuía saber que aquele era um amor gorado, sem o eco que o amor pedia.
Era desumano viver assim. Estava cansada. De si, do mundo, do mundo dentro de si.
«Às vezes, fazem-nos viajar no tempo. Outras vezes, apenas nos perdemos nele.»

...


Conferiu as velas; acendeu-as. Tinham chegado as flores; dispô-las. Olhou o relógio de parede e deixou cair o olhar sobre o relógio da lareira no momento preciso em que os ponteiros se sincronizavam. Acabara de matar o Amor.

quinta-feira, abril 21, 2005

Não é fácil morrer com método (IV)


Looking Out by artofgold


Alguns bocados de madre-pérola tinham caído e os embutidos, que formavam uma geometria floral, lembravam aqueles sorrisos das crianças na idade cómica da muda dos dentes. Os bordos da tampa eram polidos, num redondo onde apetecia demorar o indicador direito, repetindo o gesto, como quem enrola uma melena de cabelos e depois deixa que se desencaracole, lentamente, deslizando suave por entre os dedos. Abriu a caixa muito devagar, para poder absorver aquele aroma do cedro.
«Minha querida,
Não prometo mandar-te esta carta de França, mas o que eu te tinha prometido era escrever de França, e o que é prometido é devido. Mas nem sequer é por dever que te escrevo; escrevo-te pelo puro prazer de estar contigo, ainda que separados por quase dois milhares de quilómetros.»
Descansar os olhos sobre a pele de uma carta era como atirar-se sobre um fofo edredão de penúgem e deixar o corpo embutir-se. Pegara na caixa porque lhe apetecia recriar as sensações que tinha ao lê-lo. Já não sabia distinguir se era a ele que amava, se ao que sentia quando o lia.
Anulava-se a distância por se evocar uma presença? A ausência era mais espessa quando o evocava, logo, nenhuma evocação equivaleria a uma presença. Que ilusão, recriar o espaço e viver dele! A imaginação construía imagens mas não conseguia trazer os objectos. Uma carta era um meio de viajar e de encurtar distâncias. Mas não supria a falta.
«(...) No fundo, isso inscreve-se plenamente nas minhas preocupações centrais: saber o que é o bem e o que é o mal; saber - ou procurar determinar - o que é uma vida humana e, sobretudo, o que é uma vida humana que mereça a pena ser vivida. E nisso tenho gasto a minha própria vida. É uma busca, às vezes insana, mas que vale a pena realizar.»
Guardara naquela caixa todas as cartas que ele lhe enviara, e relia-as a tempos; já quase as sabia de cor. Era através daqueles pedaços de escrita que conseguia provar a si própria que não o criara; que existia, que lhe escrevia, que lhe relatava sobre a sua presença no mundo e isso era dar provas de existência. Quanto ao local de onde lhe pudesse escrever, era-lhe indiferente. Tanto podia estar em França, como na Nova Zelândia, como em Lisboa, que a proximidade não diminuía o espaço que os separava. Isabel já o tinha alojado na sua cabeça. Era aí que ele habitava.
«(...) Assim se passaram... dias no país que foi, no seu tempo, o centro do mundo civilizado.
(...) P.S. - Descobri uma trilogia de um tipo que se chama Jean-Claude Guillebaud. Estou a ler o primeiro livro, que se chama La Tyrannie du Plaisir. Daí te mando esta pérola para reflexão:
"Le commerce avec la mort serai l'ultime aphrodisiaque de nos sociétés aux désirs éteints"»

quarta-feira, abril 20, 2005

Não é fácil morrer com método (III)


Leafless by artofgold


Já não provinham do acaso, os sentimentos que agora a possuíam. Outrora, quando eram imortais, todos os corpos, todas as pessoas, todos os ideais lhes pertenciam e não havia lugar a dúvidas. Podiam amar o amor errado, que o tempo estaria do seu lado. Sobravam horas inertes, e podiam ocupá-las sem objectivo e sem traçados estudados, pois não conheciam o valor do tempo nem da perda. Irreflectidamente, outro dia viria e logo a seguir outro, atrás de outro, era certo; muito tempo para remendar o tempo, os ideais e a procura. Agora, cada sentimento tinha cadastro. Desde que se tornaram mortais que se revalorizara o tempo, os ideais e os sentimentos.
Quando tentava perfilar a biografia da memória, era com espanto que verificava não conseguir reconstruir diacronicamente eventos passados. As recordações tinham-se agrupado de forma quase estanque, como se não fosse possível encadeá-las num curso lógico, ou como se a sua vida tivesse sido construída aos supetões e não linearmente.
Por exemplo, recordava de forma vívida aquele período da sua infância onde guardara o cheiro da areia negra, aquela areia que misturava a praia e a mata e que deixava as mãos tingidas entre os dedos.
«Ai, rapariga! Cheiras a maltês! O que é que andaram a fazer, que os fui chamar e não os vi? Onde é que se meteram? Andaram outra vez a desenterrar pinhões e a trepar às árvores?» A avó Joaquina brandia o poder de guardiã num tom peremptório, mas que não intimidava, já que os seus olhos não condiziam com o que inflectia pela voz de mando. Era fácil. Bastava corar ligeiramente enquanto lentamente se baixava a cabeça e se descia o olhar pela sua figura esguia e seca, de vestes sempre pardas, entre o preto e o cinzento, e deixar-se permanecer num silêncio respeitoso e envergonhado. Ela entenderia que o seu poder tinha sido acatado, que aqueles eram meninos travessos mas obedientes. Era quanto bastava para renovar a desculpa: «Foi só desta vez».
Agora, repetia-se esse ritual perante tudo. O perdão decorria do bom desempenho daqueles gestos tantas vezes ensaiados e experimentados, como se o essencial fora mecanizá-los e a eles recorrer em situações análogas. A previsibilidade era um jogo em que cada um tomava a sua vez. Errar um gesto era desequilibrar uma história, alterar-lhe abruptamente as regras e desafiar-lhe os preceitos. Serviu-se muitas vezes desses ensinamentos, adaptando-os às mais diversas situações. Não interferira na conduta alheia; não era da sua natureza alterar um jogo, se iniciado tacitamente. Entendia quando lhe dirigiam algum «Foi só desta vez» e cumpria a sua parte da mentira ao fazer transparecer que os aceitava. Não era apenas para obter uma paz que a tranquilizasse, mas para não lograr o desempenho do outro no jogo.
Errara. Ao alimentar uma linguagem que não era a sua, ao invés do equilíbrio, desmoronara-se interiormente. Pegava agora em cacos soltos, mirava-os e meditava. Quantas vezes lhe teriam dito: «Foi só desta vez»?

Não é fácil morrer com método (II)


Dream Science by artofgold


Coerente nas contradições, Isabel escreveu amo-te com a sua melhor caligrafia e deixou-se ficar a olhar para as letras meticulosamente desenhadas sobre a folha. Um espaço enorme, a convidar à escrita, e aquele amo-te ali sozinho, perdido como ilha rodeada de branco, a desafiá-la.
A intenção primeira era deixar que o punhal se cravasse nele. Imaginara-o entre o surpreso e o derrotado, quando lhe entregassem a carta. Aquela mensagem seca, sem mais explicações, era dúbia bastante para ser interpretada vezes sem conta, sempre com significado diferente. Sim, satisfazê-la-ia deixá-lo perplexo, para sempre preso àquela impossibilidade de esclarecimento. Imaginava-o de rosto fechado, lábios premidos em tensão e um ligeiro frémito a agitar-lhe a pele sobre as têmporas. Ficar-lhe-ia gravada, em tatuagem, aquela palavra amo-te, sem recurso a remoção. Haveria alguma coisa pior do que se ficar com uma dúvida que nunca mais se poderia esclarecer? Sobretudo por nada ser evidente, nem transparente; por nunca lhe ter sido dada uma certeza, apenas uma suspeição. O amor que nunca foi declarado, não existe. É como se fosse dada à palavra uma função contratual. Tudo o que existia sem ter sido pronunciado, não existia ainda. E podia-se decidir se o seria, ou não. Deixa-se um caminho livre por onde passear afectos e, não se reclamando provas, é facilmente diminuído ou enaltecido consoante as diferenças de humor. «Ama-se de muitas maneiras. Muitas são as faces e as linguagens do amor.», ouvira-lhe uma vez e retivera essas duas frases, como missangas descosidas a um bordado. Teria, então, oportunidade para se questionar sobre a natureza daquela mensagem. Uma excelente ocasião para ponderar sobre a leitura adequada. Ah, ironia das ironias! Debitava teorias inabaláveis, ideias formadas, robustas e inquestionáveis, e agora, ver-se-ia preso nas suas próprias certezas!...
Isabel divertia-se. Sentia-se vingada. Mas não apaziguada. Rasgou aquela folha, pegou noutra e desenhou, em letras minúsculas de imprensa, bem a meio da folha: amote. Voltou a olhar para lhe experimentar o efeito, e gostou. Olhou o relógio. Em seguida o papel. Sentia-se agradada com aquela decisão final. Um leve sorriso a cirandar no semblante e a respiração tranquilizara-se. Já nem ouvia o coração.

terça-feira, abril 19, 2005

Não é fácil morrer com método (I)


Fairy's Repose by artofgold


Isabel escolheu a hora.
Acertou todos os relógios da casa pelo mostrador do seu minúsculo telemóvel. Era por ali que há muito tempo se acercava do mundo. Já tinha experimentado mantê-lo desligado. Pensava com isso demonstrar a si mesma que era capaz de se preservar, assim, afastada, como quem se apaga e a ninguém faz falta. Mas logo vinha a inquietação: "E se ele se lembra de me ligar? E se até tiver mudado de ideias, se tiver ponderado? Se tiver, por fim, sentido a minha falta?"
Encomendou as flores.
Seria Madalena a escolhê-las, quem mais? Ela saberia quais. Sabia o quanto a enjoavam os perfumes peganhentos que se colavam ao interior das narinas até a impelirem a suspender a respiração! Mas o impulso biológico vencia a resistência da vontade e lá vinha nova golfada daquele ar poluído, estonteante, a tapar todos os cheiros, a apor-se até à visão. Durante esses escassos segundos em que inspirasse, todas as coisas para onde olhasse ficariam sujas daquele cheiro! Como poderia, a seguir, recordá-las sem as associar àquela pestilência? Certos perfumes eram carrascos de imagens. Torturavam-nas até as desvalorizarem. A memória olfactiva encarregar-se-ia de as estragar, sempre que pensasse nelas. Mas Madalena saberia, dos cheiros, e das cores, também.
Conferiu as velas.
Seria melhor pedir mais. Pedir, pelo menos, mais umas duas caixas. Sim. Queria muitas, sempre acesas! Para não aparecerem aquelas sombras gigantescas nas paredes, a serpentearem pelos quadros, a trepar pelas cortinas; a lembrar demónios. Não queria o medo naquele palco. Pois se era o medo que a fazia acertar relógios...
Faria isso por si.
Provavelmente, tornar-se-iam desnecessários relógio, flores e velas, pois não precisaria de objectos, tempo, cores, perfumes ou luz. Nesse lugar não havia medo, nem dor; nem ele, nem ela. Seria, por certo, mais fácil nada ter, nada desejar. Esse era o seu último desejo.

domingo, abril 17, 2005

no limite da palavra

não se chama boca
à boca
com que te beijo
nem beijo
ao que te ponho na boca
boca e beijo
são palavras desgastadas
do sentido dos sentidos
e se saliva
é desejo

o que te ponho na boca
equivoca o que em mim sinto
são sensações
desgarradas
e se tas dou
salivadas
espero que saibas
que sinto
não chamar boca
à boca
nem beijo
se esse beijo
nascer na boca onde minto

para objectivar
pela palavra
nunca serve uma usada
ficam
boca e beijo
pelo desejo
como presos
boca e beijo
no limite da palavra

quinta-feira, abril 14, 2005

De todo

A multiplicidade
do todo
retida na parte
dá-nos a visão caleidoscópica
do todo
porque a parte
faz parte do todo
e o todo não é
de todo
a parte

segunda-feira, abril 11, 2005

na multidão

estarás presente em todos os rostos
peregrino desejo, comum, baldio e leve
breve - intenso e lento
até que o teu lugar em mim te denuncie
e leve o leve - desejo - breve

domingo, abril 10, 2005

desvalorizo

desvalorizo
tábua rasa no teu riso
e me emproo
rés-viés em alto voo
sei que deixei
o paraíso
preso nesse teu sorriso
e me comovo

sábado, abril 09, 2005

avesso

não me peçam
p’ra voltar quando me alonjo
perco o norte
sorte é poente
e me atravesso
se o excesso
é morte
antes um corte
que um recomeço
- peçam o que eu peço
- meçam o que eu meço
não me limitem
o limite do meu avesso

sexta-feira, abril 08, 2005

Se amanhã voltar o verso

Se amanhã voltar o verso
Ainda preso a metades
De metáforas sem sentido
Lembrarei universos pares
Que os tenho aqui num torso
Recolhidos, de castigo

Remodelo significados
Dos sinónimos arbitrários
De poemas que não digo
Ocupada a larvar falas
Não existo nas palavras
E os silêncios são comigo

domingo, abril 03, 2005

Passa rente

Reservadamente,
empurro o bolbo das flores que não estavam destinadas a nascer.
Enquistam no querer
mas agitam-me
, sincrónicas ,
as asas de borboleta a espadanarem-me
o estômago. A flor do medo!…
Amar assim, sem condição
em rendição, tão altruísta
que me desleixe de mim? Não creio
que o saiba fazer. Construo paredes
sólidas de ar quente e passas rente. Passas.
Rente passas.
Rente.
Tão rente ao meu querer, que não te quero querer.
Destruo toda a vontade de te amar ausente.
Querer-te e amar-te
inconfidente é morte lenta, bolbo-quistos a embolorar o que se sente.
A flor do medo inteira e minha.
Antes sozinha que demente.
Por isso, passa! Passa
rente!
Só quero flores a ameaçar o meu presente.