.................OU SEJA, UMA CONCORDÂNCIA IDEOLÓGICA....................................................................................................

sexta-feira, dezembro 30, 2005

as duas margens

digo parto e ris das palavras retorcidas
tradutor de imagens que regressa devagar
ao adiamento de todas as chegadas
dizes chego e rio das palavras comprimidas
arquitecto de paisagens por onde o vento
circular te traz adiado ao meu porto de chegadas
são tantas as horas gastas
tantos os lugares onde estive e tu não estavas
digo parto e quase chego ao rio sereno
que atravessa as duas margens

quinta-feira, dezembro 29, 2005

chegarás um dia atrasado

chegarás um dia atrasado
pensei dizer-to enquanto ainda podia
é assim até com o passado
ainda que esteja mesmo aqui ao lado
está tão longe como quando te sorria
não lamentes
são assim insipientes
os acasos que se arrastam em correntes
e o amor amor
é um jogo que se perde sem batalha
um dia chispa em chamas
noutro fenece sem razão que o valha
vale a pena de o lembrar sem pena válida
descrevê-lo é tirá-lo de um contorno
se assim definha amor o amor é abandono
e eu amo assim sem fim pensado
- ah a imensidão da gente
que se crê pertença se consola e se agasalha
com tão fraco sol de pão migalha -
mas eu trago esta fome nos dentes
nem agora nem antes vesti verdades
de enfeitar frases em poemas
a vida quero-a nua sem metades
do amor não mais apenas penas
chegarás um dia atrasado
por ti amor esperei ciente
dei-me inteira dei-te inteiro o meu presente
de ti amor guardo grata o meu passado

terça-feira, dezembro 27, 2005

olhar cansado

trago nos olhos cansados
um pouco ainda de ti. é luz fraca
que refracta o hábito de te ter
por dentro. já sem cor debota em sombras.
o ardor morreu e as delongas são cataratas
que ficam mesmo que partas da retina
do olhar meu. soa a lamento e o retrata. mas ver-te
sem te ver por dentro é espectro é folha
que o vento embrulha no chão e se arrasta
se prende à sola ou se engasta num trilho
que se perdeu.
trago nos olhos cansados
um pouco ainda de ti. desfocagem
sempre alastra como rota que me afasta
se te olhar fora de mim.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Branco. Silenciosamente branco.

Vinha agarrar em palavras
Coser-lhes missangas, mesclá-las
Para vos falar de natal
Seriam nobres mensagens
Altivas, densas imagens
Plenas de esperança afinal
Porém, parei ainda a tempo
Não sei trocar o meu lamento
Por frases compostas de cal
O meu branco é puro e portanto
Nada tem que vos traga o encanto
Que se entoe num canto banal
O meu soa tão mudo de falas
Roça um mundo tão parco de graças
Que só do silêncio é rival

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Ímpar

Mato-te
antes que morra
que só de o pensar
uma lágrima ecoa
e a consciência não perdoa
a quem não soube amar
O ímpar
é inteira parte
parte se parte pelo imo
fica em metade se parte
mas não é metade de um par

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Coágulo

Se ao menos por escrever
Se desfizesse o coágulo
Corriam lisos da estante os pensamentos
Dos outros e as paredes voltariam
A ser paredes brancas como brancos
Os meus sonhos
Vou pensar tudo de novo até
Nada escrever para não acabar em coágulo
Nas estantes encostadas às paredes
Brancas tapando os sonhos
Brancos de outros

sábado, dezembro 10, 2005

lembra-me de te fazer um esboço

esboço #1

lembra-me de te fazer um esboço
um desenho simples mal traçado mas daqueles que
ninguém se possa rir sabes não sou pintora e disso guardo
desgosto admiro mas sem inveja quem consegue
passar para a mão as imagens que lhes passam pela
cabeça eu não consigo e tenho tantos quadros na cabeça mas
lembra-me de te fazer um esboço
já entendi que te perdes nas palavras que são para ti
como rios sem margens que te transportam e nem sabes
para onde fazem-te falta as margens de uma moldura
a mim não talvez por isso por me encaixar nas palavras
tenha perdido a mão para a pintura mas tenho porém
uma vantagem a memória para as cores sabes
consigo lembrar-me das cores e
dos sons e reproduzi-los como com as palavras
lembra-me de te fazer um esboço
um esboço só de palavras para a seguir
logo a seguir o poderes mandar pintar

esboço #2

Lembra-me de te fazer um esboço. Um desenho simples, mal traçado, mas daqueles que ninguém se possa rir. Sabes, não sou pintora, e disso guardo desgosto. Admiro, mas sem inveja, quem consegue passar para a mão as imagens que lhes passam pela cabeça. Eu não consigo. E tenho tantos quadros na cabeça!…
Mas, lembra-me de te fazer um esboço.
Já entendi que te perdes nas palavras; que são para ti como rios sem margens, que te transportam e nem sabes para onde. Fazem-te falta as margens de uma moldura. A mim, não. Talvez por isso, por me encaixar nas palavras, tenha perdido a mão para a pintura. Mas tenho, porém, uma vantagem: a memória para as cores. Sabes, consigo lembrar-me das cores, e dos sons, e reproduzi-los. Como com as palavras.
Lembra-me de te fazer um esboço. Um esboço só de palavras. Para a seguir, logo a seguir, o poderes mandar pintar.

esboço #3

lembra-me
de te fazer um esboço
um desenho simples
mal traçado
daqueles que ninguém se possa rir
sabes
não sou pintora
e disso guardo desgosto
admiro
mas sem inveja
quem consegue passar para a mão as imagens que lhes passam pela cabeça
eu não consigo
e tenho tantos quadros na cabeça
mas
lembra-me
de te fazer um esboço
já entendi que te perdes
nas palavras
que são para ti como rios
sem margens
que te transportam
e nem sabes
para onde
fazem-te falta
as margens
de uma moldura
a mim
não
talvez por isso
por me encaixar nas palavras
tenha perdido a mão
para a pintura
mas tenho porém
uma vantagem
a memória para as cores
sabes
consigo lembrar-me
das cores
e dos sons
e reproduzi-los
como com as palavras
lembra-me de te fazer um esboço
um esboço
só de palavras
para a seguir
logo a seguir
as poderes mandar pintar

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Álibi

Na clausura da memória
O enredo de uma história
Espera inerte por contar
Por viver todo esse espaço
Provoca mais embaraço
Por não se poder lembrar

Mas artífice sempre inventa
Escassa seja a ferramenta
Que a matéria a trabalhar
Se transformará em peça
Se depender a tarefa
Da mão que a pode moldar

Quem a vê nem adivinha
Que nasceu quase sozinha
Da vontade do autor

Assim é com certas vidas
Embora sejam vividas
Sob o álibi do amor

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Instinto

Lá do alto
olha-me o falcão
em voos curvilíneos.
No instinto dele
sabe
que me pega;
No meu instinto
sei
que não me agarra.
Quanto de nós
pensa saber
o instinto
de quem nos observa?

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Nego tudo!

Tentem alcançar-me queda submissa
Presa pela perna a uma cadeira
No rosto a expressão cava de uma olheira

E eu
Nego tudo!

Quieta permaneço por preguiça
Nada movo nem por leve brincadeira
Séria rezo viro o terço viro freira

Verso-me eu e
Nego tudo!

Noutro modo verve é lança como liça
Redemoinho em quezília de guerreira
Verbo grado atiçado pela fogueira

E eu
Nego tudo!

Infla-me o peito o mal a dor mortiça
De te querer bem e mais que mais não queira
Esconjuro vil o amor brutal romeira

Verso-me eu e
Nego tudo!

quarta-feira, novembro 30, 2005

zen.it.ando

ficar assim
inerte e espessa
leve, enfim, me deito
sobre o teu peito leito

sintagma que aglutina
amor e leito num só sujeito

sereno se, por fim, entendo
nada temer; nenhum medo haver
se a manhã não vem, se páro também
fico inerte e espessa
deixo que adormeças dentro do meu peito
leve, enfim, te deito

quinta-feira, novembro 24, 2005

a dor a ousar

se me custa pedir
mais dói faltar
o que preciso receber
sem pedir ousar
mas ouso
enfim
doer se é dor pedir
faltar é perceber
que custa
enfim
saber o quanto dói
a dor a ousar de
precisar

domingo, novembro 20, 2005

de.mim.go

é só
domingo
dor
em mim
minguo

.
é
domingo

de mim
mingua
a dor
é só
.

quinta-feira, novembro 17, 2005

A urgência de dizer

Quando sinto a urgência
de dizer
paro na curva exausta
dos teus lábios
e sorvo o teu silêncio
como metáfora
que escreve
em mim
o que não posso ler.
A urgência passa.
Calo a palavra
naquela que te abraça.
Aquela
que diz tudo
o que eu não sei dizer.

terça-feira, novembro 15, 2005

por culpa da lua

pensei
se vês a lua
quando te olhas por dentro
como a vejo eu aqui mesmo ao lado
distintamente a vimos ambos
sem a lua termos enquadrado
de como a vejo eu
pensei
parcos instantes
e quando a vislumbrei tão alheia a mim
entendi que sou quem muda
a cada instante
e ela alheia a tudo
como tu de mim
uso-a sem quase nada
dependurada ao peito como amuleto
desse compromisso
ela, porém, nada sabe
é ré por momentos
alheios a si
cíclica existe
como existem astros
que rodam, transladam cada qual per si
num conceito lácteo de regras e espaço
sem noção de um dia poderem ter fim
pensei
e por isso muito mais me afasto
dum ciclo ao qual ínfima pertenço
tal qual poalha
que não roga ao astro a magna importância
de um recomeço
pensei
se a lua que nos pertenceu
por sorte a vimos mesmo sem a olhar
não sabe ela sermos nós cativos
dela, pois que a submetemos
às regras de amar
há uma lua nova
em cada poema que parece igual
a cada um de nós, mas quem a retrata
cega, e, sem dilema
sabe que é diferente essa lua
em nós
por isso
pensei
rendê-la inocente
das fases que usurpo dessas faces dela
cedo a libertá-la deste meu poema
deixá-la ser lua e nós pó
sem ela

segunda-feira, novembro 14, 2005

ciciando


sou
sem
sombra

sossega
.
.
.
serena
passo
célere
sem
sentires

sábado, novembro 12, 2005

Noivar

Recebe
a flor fugaz como se essência e
adorna esses teus dias
os mais vulgares
Pois breve
dura o tempo da paixão
que funde o meu e o teu
no mesmo olhar
Porém, dessa paixão,
não fiquem laços
que inibam seres fiel
ao verbo amar
Atenta!
Efémero é o bemquerer
que exala dessa flor
que te vou dar
pois fenece, dura o tempo de a oferecer
se a malquerendo
o amor, a desmerecer

quinta-feira, novembro 10, 2005

Eco

Cristalino o dia
A estrear a cor
E eu antiga
Ainda
Sem saber onde recolher
O eco dos teus lábios nos meus lábios
Em ocaso e dor

terça-feira, novembro 08, 2005

circularidade

[ num pensamento circular, define-se um ponto e chama-se-lhe início. decide-se depois aquele que o sucede. é atribuído ao não escolhido o lugar de último. a proximidade entre o início e o final não erradica nenhum dos pontos que os medeiam; apenas define a ordem de cada um no percurso. ]

é neste limiar de desigualdade
que ninguém se encontra
: alguém ascende ao nunca-mais
: outro alguém descende do ainda-não
a periferia das emoções
é hegemónica
pois quase-nunca alguém se encontra
no mesmo presente
e prometem-se voltar ao futuro
engalanando a esperança profanada
mas revigorante de um passado
onde ninguém existiu
: ainda-nunca

domingo, novembro 06, 2005

com

há um céu com
um que nos abriga míope bast
ante para nos de
cifrar sem sub
stância

só aí somos igu
ais : repetindo a viagem das ilusões

no traçado carnal
um gri
to : a chamar o am
or para dentro dos sen
tidos

sexta-feira, novembro 04, 2005

uma lua apagada

há esta imagem
constante
de noites e noites
que se alongam pelos dias
exaustas
adormecem
esperam
que a luz descreva
o percurso
da tua chegada
sob cada pálpebra
uma lua
apagada

terça-feira, novembro 01, 2005

Talvez uma rima


[Talvez uma rima resolva os diálogos adormecidos. Talvez nessa métrica caibam certas detonações e até outras mais explosões do verbo. Uma rima improvável é quanto peço às palavras sem que as amasse com má pontuação. Ir pelos sons até ao pavilhão onde se transmutam emoções rente a instalações de imagens soltas. Desobrigar tempo e espaço e recriar a nova fronteira num livre acesso onde se adivinham harmónicos de uma voz engenhosa roçando a pele da língua. Talvez uma rima caótica, imprevisível e extensa, refracte a cor branca da cadência de um morfema e percorra infinitamente o espectro rupestre da palavra primeira e se alcance o verbo.]

talvez
nunca mais
uma palavra
se repita
da palavra que foi
dita
e nasça
plena
na aventura de
um poema

terça-feira, outubro 25, 2005

Visita-te, ateu.

Visita-te, ateu.
Mesmo que desconheças os desígnios
de uma fé sem corpo. Hás-de ter algum foco
que possa incidir sobre a imagem de um deus sem tamanho.
Farás bem de teu deus, acredita.
Faz-te falta, sim, amar em sossego distanciado dos
apegos que te cobram os afectos de cartilha. Assim,
não desperdiçarás os beijos, ó avaro de ternura! Sonha
sem remorso; dá-te as asas que invejas nas falas
dos outros. Se dormes tranquilo, achas que isso é sono?
Estás morto! E na romaria dos mortos a vida é um halo a enfeitar
de serpentinas uma árvore de natal. Parece-te mal?!
Guarda nos bolsos as migalhas que agora espalhas sem gula
que a fome enjeita a fartura, canalha! A centelha que acendes não tem
óleo que a faça durar? Inventa-a! E perfuma-a. Se um fio de cheiro
te perpassar as narinas, terás conseguido incorporar
o teu deus, ó ateu dos domingos sem manhã! As escrituras que procuras
estão nas dobras do lençol. Por isso, dorme.
Se te visitares, presenteia-te e diz-te que os bilhetes na porta do frigorífico
não fazem de ti um ser vivo. Peleia! Que não há só maré cheia e
nem sempre o sol activa os ponteiros com que adornaste a lage do
teu jardim; bem podes esperar sentado o pôr do sol do meio dia.
Decresce a prece que te prometeram e que não se cumpriu? Ah ah ah
pobre de ti, que acumulas esperanças sem teres usado por mérito
as primeiras que te cabiam. Lambe os beiços, indigente da sorte!
Espera e não mudes, ó escroque! Esconde-te ou salva-te, mas aproveita
o bocado que te foi reservado e oferece-o sem baba a um pobre.
Ah! E persigna-te perante a morte
quando acabares de joelhos sem que antes tenhas ouvido soar o toque da partida.
Assim é que não, criatura; a isso não se chama vida!

domingo, outubro 23, 2005

Sombra

Queres ser o quê
De mim, que mal me sei?
Na base da nuca tenho uma estátua esculpida
Por mãos de saber tão pouco
Queres ser o quê
De mim, que mal existo?
Sujo o silêncio quando ensaio palavras
Agrestes para quem nada entende de devastação
E já nem morro porque mais não posso
Sabem-me bem as tuas mãos quando me traçam rectos os ombros
Mas isso é ser de mim o quê?
Esquadro que me projecta hirta entre a multidão dos homens pardos
Que fugiriam da ambiguidade das sombras
Não queiras de mim ser nada
Deixa-me anonimamente encostada à ombreira da porta
Que os escombros acabarão por derruir as estruturas mal desenhadas
E os ombros descairão flácidos dessa mesma posição
Tudo se renova excepto o nada de nada
E só és sombra entrelaçada no traçado do meu chão

sábado, outubro 22, 2005

Vadia-me!

Já tenho as mãos rasgadas
Pendulando entre palavras
(Não me vistas mais nada
Sou intempérie e sol com peixes)
O sem sentido é o mote
Pois a sorte é um oásis
Onde chovem lágrimas
E mãos costuradas esbanjam tâmaras
Em bocas saciadas

A alquimia do beijo é sonho nómada
O amor, involuntário
E a vida é de quem despe o desejo sedentário

segunda-feira, outubro 17, 2005

de a querer dizer

Se houvesse um tipo de felicidade
que se pudesse dizer
sem se perder tão depressa
ao ponto em que perdê-la
não tivesse qualquer importância…
A felicidade
quando importa dói.
Quase tanto quanto a impotência
de a querer dizer presente
e só se ler distância.
Retida numa mão a guardo enquanto
a outra espreita
a ocasião da troca pelo vazio abstracto
da verosimilhança.

quarta-feira, outubro 12, 2005

micro fala

eu via
as ondas a polir as pedras
numa intercepção não consentida
transformar sons em edema
enquanto a lenta linguagem geológica
estridente e dolorida
se arremessava contra as ondas
vivazes
porém tão surdas
quanto eu cega a vê-las

segunda-feira, outubro 10, 2005

Liquidamando

Deviam ensinar-nos o nomadismo
da água. Sabes, a água não tem casa;
só caminho. A água perde pedaços, quando desenforma
dos leitos. Há um não sei quê de clandestino e
inato que a água teima em transportar, mas que
não vemos. A nossa água toda liquefaz-se aprisionada
na casa do corpo. Faz puxar ao corpo um
outro corpo; um corpo leito. Sedentariza
nas veias, depois; e nós sem vermos. Tem que haver
muitos olhos de água no amor; a água nómada
a escorrer-nos sobre o peito. A água nómada a nascer-
-nos sob o peito.

terça-feira, outubro 04, 2005

há coisas

há coisas
que são para ler de noite.
há coisas
que sendo noite não podem ser lidas. ou
há coisas
que só a noite deixa ler.
há coisas
que lidas de dia não têm noite.
há coisas
da noite dos dias. ou
há coisas
que são noite todos os dias.
há noites
que fazem coisas assim.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Anjo da guarda

Mandei restaurar
O meu anjo da guarda
Quando o fui buscar
Reluzia
Aproveitou
Um momento meu de
Distracção
E escapou
À minha vigília

Vaidoso
Se humanizou

sexta-feira, setembro 30, 2005

tem_de

o poeta tem um animal de
estimação, um lugar que se enche de
ácaros, uma mancha de
luz, que entra pela janela de
sacada e se enodoa no tapete trazido de
um país que visitou numas férias.
o poeta tem provas de
existência, usa um nome de
baptismo sem relevância.
o poeta conversa, come comida de
lata com o prazo decalcado por letras de
um carimbo que o atesta.
o poeta dorme a sesta.
sempre que o poeta tem, há um de
que o comprova.
pela escrita o revoga.

segunda-feira, setembro 26, 2005

Que parta!

Se a solidão quiser partir
Que parta!
Mas que saia da soleira da porta
E deixe entrar
A claridade que tapa

domingo, setembro 25, 2005

minha lucidez

quantas vezes
o teu sonho
é a minha lucidez
outras tantas, trocamos
e em cada vez
translucido
se o sonho suicido
sigo sonhando
o teu sonho
- lucidez

sábado, setembro 24, 2005

cadeira de baloiço

Se hoje não tenho uma hora preferida
É porque desmarcaste o combinado
Sento-me no lugar errado
Mas nunca perdida
Essa é a perfeita partida
Que a vida me traz
Sentir a tua ausência
Sem nunca haver despedida
E todas as horas vacilam
Para a frente
E para trás

terça-feira, setembro 20, 2005

almografia

quando o que escrever me leia serei não ser que peleja em cada letra escassa almografia em metáfora desformatada vazia
um ser ser que se volatiliza do registo sem letra sem poesia a ler me a escrita
a ler me escrita

domingo, setembro 11, 2005

Inventário


confiro
o nome e sobram
     l   e          t   r          As
se
s.o.l.e.t.r.a.r
a parte
amorfa

continuadamente

quinta-feira, setembro 01, 2005

apesar de tudo

árido o solo que eu piso.
como o teu.
apesar de tudo.
quase iguais de próximos
se tocam.
longos espaços de tédio o cercam. e vem
recorrente o sonho
daquelas mãos todas abertas
muitas. apesar de tudo.
acenam e pedem e afagam
e escrevem. muitas mãos
a pisar os nossos solos.
não sinto saudades do vento nos cabelos.
viva a brisa no meu peito. só isso.
pendulando
e amar. apesar de tudo. e amar.
apesar de tudo.

quarta-feira, agosto 31, 2005

-la

pegar
num traço
de alma
espremê
-la e esquartejá
-la
mostrá
-la num poema
e depois rasgá
-la

terça-feira, agosto 30, 2005

Ser do ser um ente

Ser do ser um ente
Entre tantos
Sem saber
Com os anos
O que dizer
Sem voltar ao antes
Faz do dizer
Um modo antigo
De ter sido
Mas não é
Nem por instantes
O ser
O que havia de ser

sexta-feira, agosto 26, 2005

Idiomático

Acaso não entendas
O amor é idiomático
Depende de nuances de estilo
Sem nunca perder significado
Nem quando a língua que usa
Fala um outro imaginário

quarta-feira, agosto 24, 2005

O risco

Não há um único traço
Que risque inteligência
No amor
A abstracção é o risco

sábado, agosto 20, 2005

Perante os factos

Perante os factos
Pesa-se de memória os ensinamentos
Certos de poder com eles compreender
A trama ardilosa de vários momentos
Insucesso
A vida trama mentirosa
Ardila novos argumentos
E rende a tábua rasa tudo o que aprendemos
Surpreende
Devolve-nos rendidos ao presente

terça-feira, agosto 16, 2005

a pena da poesia

convicta
que o amor e a agonia
são frente e verso
esconde-se atrás do poema
a pena
escreve mágoa e alegria
dobra-se à dor
de um amor estranho
à luz do dia
milhentos versos
o constroem
existe e cresce em despudor
indiferente
aos olhos de quem o guia
usa da dor o mote
não da alegria
exerce o preconceito
mostra do peito
essa agonia

sustendo a pena
a pena da poesia
enaltece a dor mais do que devia

segunda-feira, agosto 15, 2005

intenção

não tenho nenhuma
intenção
de te mover
quero-te quieto
poder escrever
o lado fátuo das palavras

escapar à nomenclatura
que acende significados
no teu corpo


escrever

quinta-feira, agosto 11, 2005

Trago estranhos nas mãos!

eis o lugar onde o outro se abre
sereno e confiante como virgem
plasmada
o canto da terra sem céu por mantilha
ecoa no côncavo da
palavra

Trago estranhos nas mãos!

o artífice que talhou o gesto não sabe
que ainda aprendemos
os sentidos vários dos renascimentos
que entretemos
sem futuro o achado dos dias

sábado, agosto 06, 2005

Riddle

Escolher
dos acasos
um caso
será,
por acaso,
obra do acaso?
Por acaso,
não acho.
Mas
o acaso
não quer nada comigo;
apenas
me escolhe.
Por acaso?
De caso em caso,
propício
o acaso.
Quem escolhe?

sexta-feira, agosto 05, 2005

Cintel

Dolência enroscada em sol
Alonga as horas
Mais tempo para passeares por mim
No cintel tranquilo
Da memória
Não tem pele, nem arrepio
Cheira a maduro
No Verão dos meus sentidos o dia é longo

Quando me aparto da canga
De outros sonhos
Estremeço Inverno

A míngua de um solo gasto
Pequeno o dia. Alimento exíguo, pele lassa
Ossos por ombros
Roda o cintel perdido
Da memória
Sem saber se volta o dia longo
Em que retornas novo
Sem retorno

quinta-feira, agosto 04, 2005

hey you

do fausto lhe ficou
o pechisbeque
empobrecida a arca
rico o vivido
grita come back
ninguém o ouve
nobody knows
troçam do louco
enricam de arca
: comam chiclete
arrebitem infelizes
os vossos noses
sábio foi ele
o mother fucker
mais rico se sente agora
sem o mercedes
do que you às vezes
alapados nas facturas
presos à vida oca
e sem loucuras
he knows

quarta-feira, agosto 03, 2005

A estátua

Marcar encontro com a distância
Procurar aí os materiais da estátua
E perceber a robustez da perenidade
O cinzel na pedra a contar a mesma história,
A história a parecer ali completa
Sob as patas dos pássaros e sem marcas
Dos olhos dos olhadores
Marcar encontro com a distância
Dos olhos, os nossos e os do poeta
E só os pássaros a ver-nos a ver a história
Sabem que aquela estátua, próxima na sua distância,
Faz parte da perenidade da história que se conta
Vezes sem fim, materializada na obra inacabada do poeta

terça-feira, agosto 02, 2005

Crente, menino

se te acontecer
o amor
esquece
o tinteiro
as palavras
quero encontrar-me
menino
crente
que o carteiro
vem
vindo
e que não
vai
trazer mágoas

domingo, julho 31, 2005

Mín & mal #6


A
pena
de
vida
é
um
memorando
da
morte.

sábado, julho 30, 2005

Mín & mal #5


Curto
no
verso
o que
se
adivinha
ser
uma
longa
prosa

sexta-feira, julho 29, 2005

Mín & mal #4


Ao
explicar
o amor
metade
morre
ao dizer
e
outra
metade
se inventa

quinta-feira, julho 28, 2005

Mín & mal #3


Breve
é quanto
dura
o tempo
do
desconhecido.
Longo
o tempo
para
desconhecer.

quarta-feira, julho 27, 2005

Mín & mal #2


Se olhar
fixamente
o mar,
por muito tempo,
deixo de
o ver.
Podemos
ser cegos
com os olhos
parados.

terça-feira, julho 26, 2005

Mín & mal #1


Só é cedo
quando
não me deito
para
esperar
a aurora
e meu
o crepúsculo
quando
acordo.

segunda-feira, julho 25, 2005

A clarear

Escrever é organizar
Paisagens
Por vezes, interrogo-me
Como posso sobreviver
Ao breu da noite
Sem soçobrar
Na espera
De que amanheça

Desenhar caminhos
Onde me encontre
Onde também tu estejas
E conseguir
Não colidir nas rotas
Desviantes
Da comunicação

Quase me convences
De que o silêncio
É a nossa
Última morada
A casa onde
Sem luz nem som
Podemos enfim
Dialogar

sábado, julho 23, 2005

Insensatez

Se eu fosse sensata
Anotava os traços de céu sem lhes chamar
Firmamento e esquecia o óbice das pombas
Essencial
- céu sem bombas
Apodo morto
Celestial

quinta-feira, julho 14, 2005

Janela

O meu nome existe quando o
proferes. Só existo
quando me nomeias. Dito assim
na tua boca o meu nome
soa a pessoa construída.
Desvacilo em esferas
errantes por dentro do vácuo
anónimo da inexistência. Faz sentido
o corpo aos gritos; a geometria
da carne e nervos - e o céu é maior
do que o rectângulo em que
o capto
aqui da minha pequena janela.
Tudo existe. O meu nome existe
dentro do aro dos teus lábios - é maior
o meu nome quando o proferes
fica o céu pendurado
não há aro nem janela.

terça-feira, julho 12, 2005

A historiografar


(monólogos da memória)

Não me lembro já
- Quando foi que me esqueci?
Deixei-te
(Lembro agora)
Parado
No sítio onde te perdi
...
(Devia ter-me agitado.
O semblante carregado)
Foi então que apercebi
- Onde foi que me perdi?
...
Ah!
Tentava buscar-te
(A lembrar de me lembrar)
Mas fui escolher ao acaso
O vazio do teu lugar
...
(Sem querer, ficou gravado.
O vazio no meu olhar)



(monólogos da memória)

Olha,
vinha trazer-te verdades e retraí-me.
Mostro apenas o gesto que me ficou parado nos lábios.
Lê comigo. A expressão que não conheces
Também a não sei explicar. Lê-a
Conta-me o que vires.
Olha,
se me vires dentro desse gesto
Diz-me que regresse.
Tenho saudades de mim.
Cansada de andar encolhida a dizer
Nada.
Fazes-me falta.
Precisava saber-me em ti.

quinta-feira, julho 07, 2005

Sonhar jasmins

Será o sonho que comanda romper
escritas, métricas
Lançar gritos, inquietar poetas
Arrancar o que não
queima. O sonho oscila
naquele espaço
Onde nem tédio
nem cansaço condenam
tudo o que se ama. Sonhar
faz parte do refúgio
Enche de sons, pedra e búzio
E seca a mais pútrida
lama.Crescem jasmins
na dobra do leito
E o coração vibra
perfeito na condição que o sonho
emana

Sonhar liberta - jura o poeta
Empresta a paz a quem
se ama. Livre se evola, refaz,
retoma. Prende o meu verbo, solta-me
a fala. Nomeia
o jasmim que nunca se cala

domingo, julho 03, 2005

Pluriverso

Sem ti
E os dias rolam
- Como vês
Há equilíbrio
No universo -
Mas não neste verso
Sem ti
É a outra face
Equilibrada
- Um pluriverso -
E as noites que rolam
Sem fim

sexta-feira, julho 01, 2005

Água

Nunca mais digas
Água
Que me dás sede
É tão difícil
Resistir a
Água
Que seco no lago
Da tua sede de
Água
E as metáforas com
Água
São tão insípidas e incolores que
Água
Torna-se sem sede de
Água
Que dá sede
De ter dores

Ah
Água
Sede
A lavar amores

quarta-feira, junho 29, 2005

Encontrei isto dentro de um poema

Encontrei isto dentro de um poema
Estava deslocado
Sem nenhum sentido estar ali ao lado
Das palavras quentes
Dos sonhos latentes
Parecia gralha dentro de um morfema
Encontrei isto dentro de um poema
Estava desfocado
Quase lhe tocava, mesmo ali ao lado
Parecia halo, até dava pena
Encontrei isto dentro de um poema
Estava transviado
Pertence-te agora, já podes guardá-lo
Poderá um dia dar novo poema

sábado, junho 25, 2005

Sem rasto

Abri a excepção de te acolher
Corri o risco de dar forma aos teus silêncios
Toquei o mistério, padronizei o limite
Devolvi-te à tranquilidade dos teus segredos
Desaparecerás do traçado das minhas memórias
Como o risco fugaz da passagem de um cometa
Na órbita dos meus devaneios
Só o firmamento reterá o trajecto
Da extinção desse brilho no meu peito

quinta-feira, junho 23, 2005

eternidade

eternidade
dura
o
instante
em que
te abraço
assim
distante

ilusório
contorno
do espaço

não há
tempo

cansaço

quinta-feira, junho 16, 2005

A flor

Pontilha-se o olhar de constelações
que não desaparecem com o bater das pálpebras.
Experimentei a álgebra, a sintaxe,
o sossego das casas.
As borboletas a esvoaçar contra as paredes
do estômago.
Não há sabedoria bastante.
Pontualmente, os dias sucedem-se e isso vê-se nas flores.
E eu, constato que respirar é involuntário,
como despropositado o teu corpo
deitado no meu sonho.
Há uma permanência que asfixia.
Só queria uma ilha a sul onde acolher os pássaros.
Por isso, recolho a flor atrás da nuca
e sustenho a cor com as mãos em concha.
Os sons voltaram para cima dos ombros
mas cantam baixo
para que não os ouça.
Enquanto tudo permanecer inalterável
a minha vontade é um supérfluo logro.
Inventa-se a azáfama na paisagem do louco.
Não há sabedoria bastante.
É um instante longo e doloroso
que antecede a inércia da abastança.
Sobra tudo quando falta
na bravata do futuro
a flor da esperança.

quarta-feira, junho 15, 2005

adjectivado

amplo e inútil
feroz e táctil
desproporcionado
enredo de pele e medo
; volátil
frágeis constantes

perverso
o amor
sem amantes

segunda-feira, junho 06, 2005

Dos poemas vegetais

podemos açoitar o ar
lamentar
as horas onde crescem
vegetais
que o poema dá-se
noutro lugar
de nada serve a poesia
que cresce nas hortas das horas

o lugar da poesia
não está nas horas vazias
cresce nos dias
sobretudo naqueles onde não crescem vegetais

de nada serve a poesia
se não cresce nas hortas das horas
irreais

sexta-feira, junho 03, 2005

Está combinado.

Está combinado.
Mato-te a ti. Hoje.
Amanhã. Trocamos.
Vamos sentir. O alívio.
Permutado.
É mesmo assim. O amor.
Concordo. Subvertamos.
Matas-me a mim. Hoje.
Amanhã. Trocamos.
Vamos cumprir. O amor.
Está combinado.

quinta-feira, junho 02, 2005

Insecto


na indigência de afecto se oferece o sexo no extremo do corpO
zune o insecto no amplo espaço vagO
que historia o amoR
que há entre ti e o diabO

quarta-feira, junho 01, 2005

Sorvo breve

Não é nossa
a casa.
Nem dos corpos
somos donos.
Não há, por isso, nem
posse, nem abandono.
O que nos capta
é memória
Pela passagem, o
tempo empregue
E quem se
usa, acrescenta
Não abusa, reduz ou
tira para além do
Sorvo breve.

terça-feira, maio 31, 2005

Amputações latentes

Descrês dos teus próprios
pensamentos e o clamor
não pára de vociferar por dentro.
Crê-los dissonantes
das verdades corrigidas
que circulam em panfletos,
a negarem a luz dos fósforos que riscas
no breu do silêncio. Não confiras
inventários! Mede a capacidade
incomensurável, mas não te percas
a validá-la pelos que chegaram antes e viram
o depois, antes de ter sido tempo.
A circunstância mede a pegada
não a distância.
Entre os teus passos
e os meus,
ninguém reclama o firmamento.
Se fremem gritos são do futuro
no esconjuro do seu próprio chamamento.

Glasses

O meu coração é isto
Passa por mim e sem me ver
Desfaz muralhas só por querer
E ao longe, mas mesmo ao longe
Confunde amor
Com paraíso

quinta-feira, maio 26, 2005

Entorna-se o medo

Entorna-se o medo
Como
Maçãs de ouro
A amanhecer por dentro
A correr

Entorna-se o medo
E há gazelas
A correr
Nas telas
Nos olhos
Os olhos
A escorrer
Avessos

Entorna-se
O medo
E há medo
Do medo
A correr

sábado, maio 21, 2005

Adlábios

os meus lábios
            Advérbios
            Adlábios
os teus verbos
[Nenhuma gramática funciona]

quarta-feira, maio 18, 2005

Dual

A tempo | o tempo urge
Não passa | tinge e devassa
Aqui, vazio | ali surge
Decerto simples | complexo
Do mais ao menos | excesso
Se vem, se fica | que passa
Não saber | saber, sabia
Teimosa idiossincrasia
Redução | assim extravasa

quinta-feira, maio 12, 2005

TRIBILOGIA

traço uma recta
entre o espaço que vai de mim a ti
e a superfície que se formou plana
entortou-se e fechou-se em círculo
levei tempo para reconhecer
o voo de um pássaro
na forma de
uma
estrela
quando o objecto se fez conceito
varri do espaço cerebral
as nuvens quadrangulares
tropeço agora em
triângulos
perfeitos
linhas certas
três vértices
polos constantes
na vida em diagonal
que me atravessa
na recta inicial
abriram-se espaços
projecto hexágonos


(1984)

quarta-feira, maio 11, 2005

Nem rio

Não sei de margens que me estreitem
Senão teus braços
Nem de bocas que me expliquem
Senão teus lábios
Mas sequei tanto
Que de mim não tens o rio
Só fráguas da memória empobrecida

Aqui donde me vês não há guarida
Nem cais nem arrais nem mesmo cio
Não permaneço e o leito meço
Sinto ser pântano e apodreço
Corais não há peixes não tem
Não há ninguém
Nem mesmo o rio

terça-feira, maio 03, 2005

Se eu disser pássaro

Se eu disser pássaro
Cortem-me as veias!
Pássaro é símbolo de tudo
O que não roço
Se eu disser pássaro
Cortem-me ao meio!
Nessa palavra me iludo
Posso tudo o que não posso.

sábado, abril 30, 2005

Circunstância

Pouco importa
Se a lua se derrama sobre
As coisas
Ou se os peixes da memória
Formam correntes
Somos esta circunstância
Um quase nada
Um hiato na linguagem
Um átomo a mais nesta paisagem
Uma viagem sem regresso
Um esquecimento

terça-feira, abril 26, 2005

De quando em quando

Nada me pertence
Que me reclame
Entre o vão do tempo
E o sopé do espaço
O meu desenho
Desfaz o laço
A nada pertenço
Que me prenda ao mando
Só questões e dúvidas
Nada de permutas
Suspensas do braço
E as respostas francas
São só nuvens brancas
Suspensas no céu
Lá de quando em quando

domingo, abril 24, 2005

oh meu amor

oh meu amor
com que mãos te tocar
eu sei nada
nada basta eu sei oh
tocar as mãos
oh nada
basta meu amor

oh palavras
não direi amor
saberás oh
gestos nas mãos
oh nada
basta meu amor
tocar palavras

sexta-feira, abril 22, 2005

Não é fácil morrer com método (V)


Face It by artofgold


Não se prescreviam lobotomias para casos limite daquele tipo. Isabel, revolvendo ponderações, não conseguia vislumbrar em que pontos viciados se detivera, em que intrincados meandros se tinha enleado; apenas sabia que não queria para si aquele estado alienado de profusão de humores instáveis que faziam antever a loucura.

As árvores da minha infância
Exibiam uma profusão de pássaros
Que nunca mais alcancei
Havia uma asa que os lembrava
Quando da primeira vez te encontrei
Quis retrazer esses pássaros
Pousei na árvore e tombei


O limiar da dor, quando ultrapassado, despoletava em cadeia reacções ilógicas com laivos de sobrevivência. Fremiam nela as oscilações instáveis da desistência. Prometia-se controlá-las, mas sentia-se incapaz. Os contratos que se tinha contraído eram desonrados vezes demais. O tempo, aparentemente ganho com os seus discorreres lógicos, caíam no segundo exacto em que dele chegavam notícias. Ele transformara-se no magnete que atraía todos os elementos da sua vida - «O amor derrama-se em tudo, enquanto o amor tudo derrama.». Parecia que tudo voltava ao início; que em cada novo momento se renovava uma esperança, mas intuía saber que aquele era um amor gorado, sem o eco que o amor pedia.
Era desumano viver assim. Estava cansada. De si, do mundo, do mundo dentro de si.
«Às vezes, fazem-nos viajar no tempo. Outras vezes, apenas nos perdemos nele.»

...


Conferiu as velas; acendeu-as. Tinham chegado as flores; dispô-las. Olhou o relógio de parede e deixou cair o olhar sobre o relógio da lareira no momento preciso em que os ponteiros se sincronizavam. Acabara de matar o Amor.

quinta-feira, abril 21, 2005

Não é fácil morrer com método (IV)


Looking Out by artofgold


Alguns bocados de madre-pérola tinham caído e os embutidos, que formavam uma geometria floral, lembravam aqueles sorrisos das crianças na idade cómica da muda dos dentes. Os bordos da tampa eram polidos, num redondo onde apetecia demorar o indicador direito, repetindo o gesto, como quem enrola uma melena de cabelos e depois deixa que se desencaracole, lentamente, deslizando suave por entre os dedos. Abriu a caixa muito devagar, para poder absorver aquele aroma do cedro.
«Minha querida,
Não prometo mandar-te esta carta de França, mas o que eu te tinha prometido era escrever de França, e o que é prometido é devido. Mas nem sequer é por dever que te escrevo; escrevo-te pelo puro prazer de estar contigo, ainda que separados por quase dois milhares de quilómetros.»
Descansar os olhos sobre a pele de uma carta era como atirar-se sobre um fofo edredão de penúgem e deixar o corpo embutir-se. Pegara na caixa porque lhe apetecia recriar as sensações que tinha ao lê-lo. Já não sabia distinguir se era a ele que amava, se ao que sentia quando o lia.
Anulava-se a distância por se evocar uma presença? A ausência era mais espessa quando o evocava, logo, nenhuma evocação equivaleria a uma presença. Que ilusão, recriar o espaço e viver dele! A imaginação construía imagens mas não conseguia trazer os objectos. Uma carta era um meio de viajar e de encurtar distâncias. Mas não supria a falta.
«(...) No fundo, isso inscreve-se plenamente nas minhas preocupações centrais: saber o que é o bem e o que é o mal; saber - ou procurar determinar - o que é uma vida humana e, sobretudo, o que é uma vida humana que mereça a pena ser vivida. E nisso tenho gasto a minha própria vida. É uma busca, às vezes insana, mas que vale a pena realizar.»
Guardara naquela caixa todas as cartas que ele lhe enviara, e relia-as a tempos; já quase as sabia de cor. Era através daqueles pedaços de escrita que conseguia provar a si própria que não o criara; que existia, que lhe escrevia, que lhe relatava sobre a sua presença no mundo e isso era dar provas de existência. Quanto ao local de onde lhe pudesse escrever, era-lhe indiferente. Tanto podia estar em França, como na Nova Zelândia, como em Lisboa, que a proximidade não diminuía o espaço que os separava. Isabel já o tinha alojado na sua cabeça. Era aí que ele habitava.
«(...) Assim se passaram... dias no país que foi, no seu tempo, o centro do mundo civilizado.
(...) P.S. - Descobri uma trilogia de um tipo que se chama Jean-Claude Guillebaud. Estou a ler o primeiro livro, que se chama La Tyrannie du Plaisir. Daí te mando esta pérola para reflexão:
"Le commerce avec la mort serai l'ultime aphrodisiaque de nos sociétés aux désirs éteints"»

quarta-feira, abril 20, 2005

Não é fácil morrer com método (III)


Leafless by artofgold


Já não provinham do acaso, os sentimentos que agora a possuíam. Outrora, quando eram imortais, todos os corpos, todas as pessoas, todos os ideais lhes pertenciam e não havia lugar a dúvidas. Podiam amar o amor errado, que o tempo estaria do seu lado. Sobravam horas inertes, e podiam ocupá-las sem objectivo e sem traçados estudados, pois não conheciam o valor do tempo nem da perda. Irreflectidamente, outro dia viria e logo a seguir outro, atrás de outro, era certo; muito tempo para remendar o tempo, os ideais e a procura. Agora, cada sentimento tinha cadastro. Desde que se tornaram mortais que se revalorizara o tempo, os ideais e os sentimentos.
Quando tentava perfilar a biografia da memória, era com espanto que verificava não conseguir reconstruir diacronicamente eventos passados. As recordações tinham-se agrupado de forma quase estanque, como se não fosse possível encadeá-las num curso lógico, ou como se a sua vida tivesse sido construída aos supetões e não linearmente.
Por exemplo, recordava de forma vívida aquele período da sua infância onde guardara o cheiro da areia negra, aquela areia que misturava a praia e a mata e que deixava as mãos tingidas entre os dedos.
«Ai, rapariga! Cheiras a maltês! O que é que andaram a fazer, que os fui chamar e não os vi? Onde é que se meteram? Andaram outra vez a desenterrar pinhões e a trepar às árvores?» A avó Joaquina brandia o poder de guardiã num tom peremptório, mas que não intimidava, já que os seus olhos não condiziam com o que inflectia pela voz de mando. Era fácil. Bastava corar ligeiramente enquanto lentamente se baixava a cabeça e se descia o olhar pela sua figura esguia e seca, de vestes sempre pardas, entre o preto e o cinzento, e deixar-se permanecer num silêncio respeitoso e envergonhado. Ela entenderia que o seu poder tinha sido acatado, que aqueles eram meninos travessos mas obedientes. Era quanto bastava para renovar a desculpa: «Foi só desta vez».
Agora, repetia-se esse ritual perante tudo. O perdão decorria do bom desempenho daqueles gestos tantas vezes ensaiados e experimentados, como se o essencial fora mecanizá-los e a eles recorrer em situações análogas. A previsibilidade era um jogo em que cada um tomava a sua vez. Errar um gesto era desequilibrar uma história, alterar-lhe abruptamente as regras e desafiar-lhe os preceitos. Serviu-se muitas vezes desses ensinamentos, adaptando-os às mais diversas situações. Não interferira na conduta alheia; não era da sua natureza alterar um jogo, se iniciado tacitamente. Entendia quando lhe dirigiam algum «Foi só desta vez» e cumpria a sua parte da mentira ao fazer transparecer que os aceitava. Não era apenas para obter uma paz que a tranquilizasse, mas para não lograr o desempenho do outro no jogo.
Errara. Ao alimentar uma linguagem que não era a sua, ao invés do equilíbrio, desmoronara-se interiormente. Pegava agora em cacos soltos, mirava-os e meditava. Quantas vezes lhe teriam dito: «Foi só desta vez»?

Não é fácil morrer com método (II)


Dream Science by artofgold


Coerente nas contradições, Isabel escreveu amo-te com a sua melhor caligrafia e deixou-se ficar a olhar para as letras meticulosamente desenhadas sobre a folha. Um espaço enorme, a convidar à escrita, e aquele amo-te ali sozinho, perdido como ilha rodeada de branco, a desafiá-la.
A intenção primeira era deixar que o punhal se cravasse nele. Imaginara-o entre o surpreso e o derrotado, quando lhe entregassem a carta. Aquela mensagem seca, sem mais explicações, era dúbia bastante para ser interpretada vezes sem conta, sempre com significado diferente. Sim, satisfazê-la-ia deixá-lo perplexo, para sempre preso àquela impossibilidade de esclarecimento. Imaginava-o de rosto fechado, lábios premidos em tensão e um ligeiro frémito a agitar-lhe a pele sobre as têmporas. Ficar-lhe-ia gravada, em tatuagem, aquela palavra amo-te, sem recurso a remoção. Haveria alguma coisa pior do que se ficar com uma dúvida que nunca mais se poderia esclarecer? Sobretudo por nada ser evidente, nem transparente; por nunca lhe ter sido dada uma certeza, apenas uma suspeição. O amor que nunca foi declarado, não existe. É como se fosse dada à palavra uma função contratual. Tudo o que existia sem ter sido pronunciado, não existia ainda. E podia-se decidir se o seria, ou não. Deixa-se um caminho livre por onde passear afectos e, não se reclamando provas, é facilmente diminuído ou enaltecido consoante as diferenças de humor. «Ama-se de muitas maneiras. Muitas são as faces e as linguagens do amor.», ouvira-lhe uma vez e retivera essas duas frases, como missangas descosidas a um bordado. Teria, então, oportunidade para se questionar sobre a natureza daquela mensagem. Uma excelente ocasião para ponderar sobre a leitura adequada. Ah, ironia das ironias! Debitava teorias inabaláveis, ideias formadas, robustas e inquestionáveis, e agora, ver-se-ia preso nas suas próprias certezas!...
Isabel divertia-se. Sentia-se vingada. Mas não apaziguada. Rasgou aquela folha, pegou noutra e desenhou, em letras minúsculas de imprensa, bem a meio da folha: amote. Voltou a olhar para lhe experimentar o efeito, e gostou. Olhou o relógio. Em seguida o papel. Sentia-se agradada com aquela decisão final. Um leve sorriso a cirandar no semblante e a respiração tranquilizara-se. Já nem ouvia o coração.

terça-feira, abril 19, 2005

Não é fácil morrer com método (I)


Fairy's Repose by artofgold


Isabel escolheu a hora.
Acertou todos os relógios da casa pelo mostrador do seu minúsculo telemóvel. Era por ali que há muito tempo se acercava do mundo. Já tinha experimentado mantê-lo desligado. Pensava com isso demonstrar a si mesma que era capaz de se preservar, assim, afastada, como quem se apaga e a ninguém faz falta. Mas logo vinha a inquietação: "E se ele se lembra de me ligar? E se até tiver mudado de ideias, se tiver ponderado? Se tiver, por fim, sentido a minha falta?"
Encomendou as flores.
Seria Madalena a escolhê-las, quem mais? Ela saberia quais. Sabia o quanto a enjoavam os perfumes peganhentos que se colavam ao interior das narinas até a impelirem a suspender a respiração! Mas o impulso biológico vencia a resistência da vontade e lá vinha nova golfada daquele ar poluído, estonteante, a tapar todos os cheiros, a apor-se até à visão. Durante esses escassos segundos em que inspirasse, todas as coisas para onde olhasse ficariam sujas daquele cheiro! Como poderia, a seguir, recordá-las sem as associar àquela pestilência? Certos perfumes eram carrascos de imagens. Torturavam-nas até as desvalorizarem. A memória olfactiva encarregar-se-ia de as estragar, sempre que pensasse nelas. Mas Madalena saberia, dos cheiros, e das cores, também.
Conferiu as velas.
Seria melhor pedir mais. Pedir, pelo menos, mais umas duas caixas. Sim. Queria muitas, sempre acesas! Para não aparecerem aquelas sombras gigantescas nas paredes, a serpentearem pelos quadros, a trepar pelas cortinas; a lembrar demónios. Não queria o medo naquele palco. Pois se era o medo que a fazia acertar relógios...
Faria isso por si.
Provavelmente, tornar-se-iam desnecessários relógio, flores e velas, pois não precisaria de objectos, tempo, cores, perfumes ou luz. Nesse lugar não havia medo, nem dor; nem ele, nem ela. Seria, por certo, mais fácil nada ter, nada desejar. Esse era o seu último desejo.

domingo, abril 17, 2005

no limite da palavra

não se chama boca
à boca
com que te beijo
nem beijo
ao que te ponho na boca
boca e beijo
são palavras desgastadas
do sentido dos sentidos
e se saliva
é desejo

o que te ponho na boca
equivoca o que em mim sinto
são sensações
desgarradas
e se tas dou
salivadas
espero que saibas
que sinto
não chamar boca
à boca
nem beijo
se esse beijo
nascer na boca onde minto

para objectivar
pela palavra
nunca serve uma usada
ficam
boca e beijo
pelo desejo
como presos
boca e beijo
no limite da palavra

quinta-feira, abril 14, 2005

De todo

A multiplicidade
do todo
retida na parte
dá-nos a visão caleidoscópica
do todo
porque a parte
faz parte do todo
e o todo não é
de todo
a parte

segunda-feira, abril 11, 2005

na multidão

estarás presente em todos os rostos
peregrino desejo, comum, baldio e leve
breve - intenso e lento
até que o teu lugar em mim te denuncie
e leve o leve - desejo - breve

domingo, abril 10, 2005

desvalorizo

desvalorizo
tábua rasa no teu riso
e me emproo
rés-viés em alto voo
sei que deixei
o paraíso
preso nesse teu sorriso
e me comovo

sábado, abril 09, 2005

avesso

não me peçam
p’ra voltar quando me alonjo
perco o norte
sorte é poente
e me atravesso
se o excesso
é morte
antes um corte
que um recomeço
- peçam o que eu peço
- meçam o que eu meço
não me limitem
o limite do meu avesso

sexta-feira, abril 08, 2005

Se amanhã voltar o verso

Se amanhã voltar o verso
Ainda preso a metades
De metáforas sem sentido
Lembrarei universos pares
Que os tenho aqui num torso
Recolhidos, de castigo

Remodelo significados
Dos sinónimos arbitrários
De poemas que não digo
Ocupada a larvar falas
Não existo nas palavras
E os silêncios são comigo

domingo, abril 03, 2005

Passa rente

Reservadamente,
empurro o bolbo das flores que não estavam destinadas a nascer.
Enquistam no querer
mas agitam-me
, sincrónicas ,
as asas de borboleta a espadanarem-me
o estômago. A flor do medo!…
Amar assim, sem condição
em rendição, tão altruísta
que me desleixe de mim? Não creio
que o saiba fazer. Construo paredes
sólidas de ar quente e passas rente. Passas.
Rente passas.
Rente.
Tão rente ao meu querer, que não te quero querer.
Destruo toda a vontade de te amar ausente.
Querer-te e amar-te
inconfidente é morte lenta, bolbo-quistos a embolorar o que se sente.
A flor do medo inteira e minha.
Antes sozinha que demente.
Por isso, passa! Passa
rente!
Só quero flores a ameaçar o meu presente.

quarta-feira, março 30, 2005

É imperativo amar sorrindo

Aguardo as flores.
Vamos brincar amores
Como abelhas nos sobrados.
A seguir às dores
Reverdecem prados.

segunda-feira, março 28, 2005

A nudez

[A nudez
será sempre a melhor forma
de nos cobrirmos.
Como ficar a fabricar flores
frescas nas tuas costas
se não com as polpas de dedos e lábios
a tecer espantos
de arrepios de espasmos?]

A pele texturada
de amores antigos sabe que
amar se faz amando em todos os planos
e todos os recomeços
são estreias sem estrias
e todos novos os enganos
dos sentidos.

suco lento

Acho que amadureci
No pretexto de te espremer os lábios.
Sei agora que a boca
É um contexto para fermentar o mosto
De cada um e todos
Esses frutos, vários.

domingo, março 27, 2005

Grace e aço

[Acaso alguém controla
as fronteiras dos astros?
Como poder traçar perpétuos
no meu ventre
se o olhar desmente
e o infinito é fátuo?]


O meu espaço
sou eu que o traço
; bricobraço e peito em aço.

Limpa os beijos no tapete da entrada.
Trazes a língua ensanguentada
e rasgar
amor
desgasta.

Desfaz o tédio no meu corpo.
Tenho a alma em open space
e o seu nome é grace

; nada a exausta.

Sopro

Projecta o sopro para a tua voz, de novo.
O ar sempre indiciou o desejo do voo
E nenhuma ave se despenhou no medo.
A asa escreve o percurso do enredo
Mas também o som inaudível
Que se inscreve no trajecto do segredo.

A voz, isenta de razões, presa ao movimento
Desprende, se liberta, o pensamento.

quinta-feira, março 24, 2005

Os meus mortos

Não consigo matar os meus mortos
Permanecem na biografia dos dias
Sem tortura de pregos ensanguentados.
Vivem aqui, manietados.
Resgatados de uma paz que não os deixa
Mantê-los longe, tranquilos pela distância.
Acusá-los ou enaltecê-los
Sem se advogar poderem
Vivem da vida que lhes permito terem
Quer na memória que lhes limpa a história
Quer na irreal estatura por não perecerem.
Os meus mortos existem na cerimónia
Impressa pelas memórias
Incapazes de os esquecerem.

quarta-feira, março 23, 2005

A dúvida disléxica sobre a mendicidade

Para quê mendigar
Beijos
Se dois lábios mentem unos
E dois mundos
Se dividem
Quando duas me abro em pernas?

Para quê mendigar
Pernas
Se dois mundos mentem lábios
E dois lábios
Mentem unos
Se dividida me dou em beijos?

Para quê mendigar
Mundos
Se duas pernas me abrem pernas
E dois lábios
Mentem com beijos
E unidos dividem unos?

segunda-feira, março 21, 2005

asas

as pombas todas
nos teus olhos
e os falcões
nas minhas mãos
. devorar-te
nenhum mistério de asas
rasga o voo
o horizonte
a queimar as pombas todas
nos teus olhos
. imolar-me

domingo, março 20, 2005

A preto e branco

Não me esquecem.
Não me deixam.

Ter memória e não saber
: se esquecer deixar
: se deixar esquecer
Sei que o dia a preto a branco
Esconde o detalhe da cor
: o céu azul, o mar azul
- os versos de amor, nem tanto.

Azul, se me esqueço.
Azul, se me deixo.

sábado, março 19, 2005

Demónios

Ainda tenho demónios
Na solidão dos sonhos
Que se desencrostam
Das sombras da noite
E a sibilar se mostram

Espalmo o pensamento contra a vidraça
Uma estrela faria toda a diferença

quinta-feira, março 17, 2005

seguro

não é a razão que procuro
se me vês aos círculos
é por seres tu quem gira
que eu fiquei parada
- quem pensa oscila -
até que entendas
a geometria do muro

nada circular procuro
apenas que escales as pedras seguro

quarta-feira, março 16, 2005

mineranimada

cristalizado
o desejo
dura, a eternidade
um beijo

a pedra no peito
puro magma
assiste, metamorfose
a água

mineranimada

livre leve

as palavras
penduradas
na tua boca fechada
- não fazem falta

livre
leve

ocupa-a
a coser beijos
e a destruir casas

o silêncio
pelas ruas
sem desenhos de calçada
- nem morada

livre
leve

com os braços abertos
abraçada
- não querer mais nada

terça-feira, março 15, 2005

entardecer contigo

o dia traça rotas
em retortas de luz oblíqua.
o declínio
da linha deitada
é vertical mal olhada.
mudo a posição.
rectifico
o dia
até serenar no crepúsculo
que se encosta à tua boca.
depois
depois é desenhar estrelas
até ser madrugada.
e antes de adormecer
sonhar contigo.

sexta-feira, março 11, 2005

Psicossomatizando

Porque
se engasta o pensamento
no lado
errado do peito?

Ah! Hipocrisia das ciências!...

O escalpe em sangue a esticar no horizonte
e o coração a renovar segredos.

quinta-feira, março 10, 2005

mostrar a esconder

nunca me escondo num poema.
é o poema que me escolhe para o esconder.
e saem frases caóticas se estiver caótica.
e frases assemânticas quando estou neurótica.
e eu escolho-as criteriosamente até parecer que as estou a dizer.
por vezes parece um poema.
por vezes não há poema; é só dizer.
é que ele equilibra-se melhor do que eu.
agora, por exemplo,
tenho um poema alojado em mim
e eu mostro-me por não o saber dizer.
podia até escrever com isso um poema
que continuava a existir um poema enorme por dizer.
nunca lamento um poema.
apenas mostro que ele está escondido.
não eu, se o tentar dizer.
adoro sentir um poema e guardá-lo sem o esconder.

quarta-feira, março 09, 2005

não acordes o amor

não acordes o amor
deixa que alise os dias
e soterre o cansaço
-
A brisa que sopra e agita as giestas
Muda as dunas num jeito de festas
Pendura amarelo na policromia do mar
Que o turbilhão do amor, ao passar
Muda a paisagem, as cores,
E temos os braços curtos para tanta orgia de amores
-
não o acordes
sossega o peito, as mãos frias
não tarda vemo-lo chegar

A linha

leve

a linha

sobre
__________

sob

a linha

pesa

sexta-feira, março 04, 2005

não sei

não quero amar
não sei
só sentimento
errando a pele
é dor bastante
e nascem estrelas nos olhos
que duram mais do que o instante
em que me perco
a pensar
que amar é bem

não quero ver
nem pensar
não sei
se é medo amar
me encolho
que se me encontro
sob o teu céu de desencontro
reclamo a luz
que o céu não tem
- e a sombra, eu sei

quinta-feira, março 03, 2005

O que eu queria

O que eu queria
era preferir o poliéster aos fios orgânicos
as flores de plástico às imperfeições dos gerânios
Mas assim privar-me-ia
de poder amar o honesto em cada resto
e a eternidade seria um insucesso por cada dia

terça-feira, março 01, 2005

em carne viva

experimenta
falar em carne viva
verás se tem nexo o teorema
quando a língua perde a memória

amar é um idioma que balbucio
e cada beijo erra um vocábulo

segunda-feira, fevereiro 28, 2005

A pena

Eu bem me invento
Adornada de silêncio
Só levemente
Humanecida - é bem verdade
Adivinhavas
Lentamente essa vontade
Sem palavras
Apenas beijos no teu corpo?

Não digo tudo
Quando não te digo nada
Nem me extravio
Se no teu peito derramada
Me digo inteira

O meu poema
Escreve com a boca no teu corpo
E eu calo a pena
- a verdadeira

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Um poema de amor

todos os dias a nossa dose de castigo
- essa distância
tudo isso e o seu contrário
- esta presença
não fora essa verdade em permanência
e o momento em que te evoco era dorido
se aqui te invoco
ficas perto do meu peito
se me equivoco
- longe a dor
é mal antigo
o que me chega novo e me provoca
é a pressão da sem razão da tua ausência
a sufocar-me nesta hora em que a maldigo
- meu o castigo

terça-feira, fevereiro 22, 2005

É condição

Não renego a aclamação
Que vem pelos canais das veias.
Pois se existe, é condição.
Se tapo a boca aos pensamentos
Se aos gestos procuro exactos
Não sonego ao coração
Alegria, dor, devoção.
Que só protejo a interactos
A lucidez camuflada
Pelo paliativo dos tactos.

sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Nada ter para tudo ter

Não conquistar
É árduo. Exige paciência.
Saquear. Outro vício da pan-querença.
Nada ter para tudo ter
É tão difícil
Que ter apenas o ensejo
É ter já conquistado
E saqueado a essência.
Despojado do haver
Talvez o ser nos devolva a competência
De querer não querer.
Antes se achar sem procurar
Alienar no sedimento da carência.

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

estatura

a cada qual a sua estatura
nem mais nem menos
do que o tamanho
do seu pensamento
assim
se nivelasse
as palavras que não leio
as palavras que não escrevo
as palavras que não lendo nem escrevendo
existem
porém fora do meu pensamento
a imensa planície
seria o terreiro lavado pelas chuvas
o raiar do dia nascido das brumas
assim
penso e não percebo
nem as palavras
nem o tamanho
porque
as que penso estão fora
e se
estando fora existem
não sei pensar nem na chuva
nem no terreiro
nem no sol a nenhuma altura
assim é a minha estatura

terça-feira, fevereiro 15, 2005

Chão por estrear

Vem revolver dos meus planos os escolhos
Se sobram olhos
Que sejam para mirar em deleite
O que não planeei, nem tracei, nem usei
Se sobram braços
Que nos empurrem para os espaços
Livres do desenho estudado
Nem destino, nem caminho repisado
Se sobram passos
Que percorram. Devagar
Que só quero chão por estrear
E nada de antigos cheiros em novos regaços

sábado, fevereiro 12, 2005

Não quero então sonhar. Nem.

Lá vai a imaginação percorrer
em círculos as fronteiras do verbo.
Reduz-se o pensamento à medida das palavras.
Percebes agora porque te não digo?
Se digo a necessidade falta o horizonte
Se digo tempestade falta o tempo do corisco
Por isso têm plumas as flores
E são azuis os veios das pedras
E as aves não podem ser pássaros poisados mas a voar.
Se te trago enganadas as cores dos meus objectos
Como te poderei as formas dos meus sonhos trazer inteiras
Se só posso sonhar o verbo dentro das fronteiras?

Não quero então sonhar. Nem dizer. Então. Nem.

Transvio palavras mas são esquálidos retratos que lembram imagens de falácias
E não me agarras se me perco
Tanto quanto me perco nessas garras de ninguém.
Não me servem as palavras nem os sons nem as imagens
Se dentro delas não correr o vento dos avessos do pensamento.
Desumanizo no descalabro das cigarras
Se te disser velocidades fragmentadas
Como passeios à beira-mente
E ainda me sento cansada de dizer nada que te acrescente.

Os pássaros voam pelos veios azuis das pedras até às plumas das flores.

Mas ficam presos dentro das fronteiras do verbo
Num exercício geométrico de pavores.

Não quero então sonhar. Nem dizer. Então. Nem.
Há-de haver algum lugar além-palavra onde aguardar a primeira palavra-além.

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

De lembrar

o cheiro da memória
a lembrar de lembrar
momentos
líquidos
sem os deixar enxugar
os joelhos na pedra
a língua no peito
asfaltar

lembre-se a rosa de ser rosa
o luar de ser luar
que eu não vou esquecer
de lembrar de lembrar

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

há um poema

apenas o silêncio se comove
quando a noite cai por dentro
e eu não sei como se escreve
esse poema

está na pausa entre
duas músicas nos rangidos de
uma porta na gota de
frio condensada
pelo vidro nos pêlos
da cadela presos no tapete
da sala nas sombras que
tingem lençóis no primeiro grito
do último homem por nascer

quando o silêncio se comove
cai um poema para dentro da noite
e não o vou suster

sexta-feira, fevereiro 04, 2005

Clivagem

não adianta atiçar vulcões
deitar sal na carne crua
cortar os pulsos à palavra
- até a verdade sangrar -

sem olhos sem orelhas
pardacenta ou mutilada
alguma biografia inacabada
acabará por se clivar

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

secura

policiaremos a construção de oásis
só perfilar cachos de tâmaras
abocanhar o sol
e cuspir esculturas de areia
até que a sede se consuma
concêntrica na miragem

nenhum desejo de água encanada
por dentro da terra a língua
encarnada

sexta-feira, janeiro 28, 2005

como não

como não imigrar palavras
se estrangeiro é teu corpo
aqui, se o não acho
como não verter escarlate
se incolor é o abraço
aqui, se o não acho
rios e estradas e árvores e astros
suspensos no espaço
e um universo submerso
aqui, se o não acho
como não fantasiar amando
se a realidade se move andando
aqui, se a não acho

quarta-feira, janeiro 26, 2005

urgentes

contorce-te agonizando
e suporta a indiferença
que não há força que desmantele
a antiga crença
serás monstro num circo itinerante
que em nenhum instante penses
estar o mundo preparado
que a tolerância não convence
não percas a tua marca
prossegue nessa demanda
e traz o ardor, sem dor, a flama
dos teus versos pertinentes
que a forma transgride a norma
mas é tua e nova a chama
que traz inteiras, se as derramas
as palavras mais urgentes

segunda-feira, janeiro 24, 2005

renomear

quando as mãos não tocam
chamam-se fim de braço

quando a um braço se encosta um corpo
chama-se a esse braço cadeira

quando uma asa de pássaro não escreve nos lábios sorriso
boca é uma parte do rosto que se chama boca

de pouco serve a poesia que se explica
porque a poesia não serve; renomeia

observe-se se o falador
se cala ou se fala a dor de outra maneira

quinta-feira, janeiro 20, 2005

inverter a lógica

só os gemidos Do Corpo nos acordam
e adivinham cisnes aqui perto
que o Saber de nada serve neste infinito
breve e inteiro
em que as garras da abundância nos devoram
em que os cristais brilham sem ter lume
rasos de água
levitam poços no deserto

só a palavra
pode inventar O Silêncio Provisório
dentro do búzio
o mar é vocábulo que se equivoca
e o verbo é boca
a trepar rente à planície do lúcido

quarta-feira, janeiro 19, 2005

senta-te aqui

senta-te aqui
na eira larga do meu peito
e descansa o fardo
o mundo nem te sente
se te fizeres ausente
e as minhas mãos
precisam dos teus cabelos
para serem gente
descansa a fala
nos meus lábios
traz-me as searas aparadas
pelos teus passos rentes
os outros nadas
são universos
limitados
pela sucessão das nossas alvoradas
quentes
sentes?

terça-feira, janeiro 18, 2005

nada a declarar

mostro-te as veias
no limite das palavras
sem trajecto de falas.
dizer nada
fazer nada
para que tudo saibas.
arar caminhos
sem frases padronizadas.
ver-te chegar
sem afluente de verdades
estereotipadas.
o teu olhar é o morfema
que traz caladas
as mentiras de outros dias
que não cabem
na arquitectura singular
destas palavras.

as veias rotas
as mãos rasgadas
mínimo gesto e convocas enxurradas.

sábado, janeiro 15, 2005

Reprise

Lembras-te
Do quanto foste amado?
Sossega, corpo enciumado.
Devolve aos leitos desfeitos do passado
As margens do brilho que desenhaste
Nas ilhas das pupilas de outros olhos.
O que te deita não é fotogénico.
Que o desejo tem tantos planos
Que desafia a sinusóide.
Quem te olha e te devora
Não rouba a essência nem se demora.
Leva da pele apenas ardor.
Que o amor
Quando desarvora
Projecta na tela o leito sem dor.
A urgência é de afecto
Sem filme sintético
E sem marcar a hora
Para gravar o amor.

A reprise a sobrar é o sobrar da flor.

sexta-feira, janeiro 14, 2005

Inerciar

.
Não há poesia.
.
Não há ponte.
.
Nem estrela a querer ser onda.
.
Nem sintaxe que me devolva.
.
Dentro não tem litoral.
.
Não há céu.
.
Nem temporal.
.

quinta-feira, janeiro 13, 2005

Silêncio

Experimento
nada dizer.
Talvez assim
o brilho não fira
a ave seja só bicho
e o mar uma tina de água.
Todas as coisas
aquietadas.
Só coisas
geometrizadas.
Nem um fonema
por mim perpasse.
E eu
descanse.

segunda-feira, janeiro 10, 2005

Chega de saudade!

Chega de saudade!
Melancolia nunca foi arte
Nem reza ilesa. Tristeza.
Se a semente não se parte
Fende-se a terra em vão
Ara-se o peito em sulcos líquidos
E as rosas partem em barcos
Deixando em cacos o chão.
Que siga, então!
Que mulher de marinheiro
Não se agaste o tempo inteiro
Cosendo a sombra na sombra
E largue de vez o esporão!

sexta-feira, janeiro 07, 2005

sentarei as palavras

pronto.
sentarei as palavras
mudas. não falem.
se as habitam sombras
esbatam seus contornos.
se os rios amansam
que sosseguem vagas
sejam ilhas de ombros
para pássaros frágeis.

pronto.
sentarei as palavras
mudas. não falem.
se as habitam luzes
destaquem-se as formas.
se a terra empregam
endurece o magma
anoitece um ciclo
silencie-se a alma.

quinta-feira, janeiro 06, 2005

(e)migrações

não me impeçam
de dilatar
se forma for
de policromar
se o momento for cor

não me viciem
preso num gesto
que eu parto o gesso
e escorro espesso
o líquido desfazedor

as orlas que a espuma
timbra bordos na areia
não são fronteira
mas palafitas na bruma
que se
o caminho se faz caminhando
é partindo e chegando
e é isso que eu sou
foi aqui que cheguei
mas é ali que eu estou

*
(Migrações que, de Leste, aqui aportaram e que hoje comemoram.
Os meus bons votos!)

segunda-feira, janeiro 03, 2005

sem pena

larguei as penas
sem pena
para te acolher.

não chegavas.
inquietei-me.

mais tarde percebi
que já estavas.
nem senti que enquanto
esperava
te tinha trazido agarrado.

era o passado.
- engraçado! -
tão bem dissimulado
colado no meu presente.

larguei as penas
sem pena.
aquietei-me.
fiz-te ausente.