Não é fácil morrer com método (III)
Já não provinham do acaso, os sentimentos que agora a possuíam. Outrora, quando eram imortais, todos os corpos, todas as pessoas, todos os ideais lhes pertenciam e não havia lugar a dúvidas. Podiam amar o amor errado, que o tempo estaria do seu lado. Sobravam horas inertes, e podiam ocupá-las sem objectivo e sem traçados estudados, pois não conheciam o valor do tempo nem da perda. Irreflectidamente, outro dia viria e logo a seguir outro, atrás de outro, era certo; muito tempo para remendar o tempo, os ideais e a procura. Agora, cada sentimento tinha cadastro. Desde que se tornaram mortais que se revalorizara o tempo, os ideais e os sentimentos.
Quando tentava perfilar a biografia da memória, era com espanto que verificava não conseguir reconstruir diacronicamente eventos passados. As recordações tinham-se agrupado de forma quase estanque, como se não fosse possível encadeá-las num curso lógico, ou como se a sua vida tivesse sido construída aos supetões e não linearmente.
Por exemplo, recordava de forma vívida aquele período da sua infância onde guardara o cheiro da areia negra, aquela areia que misturava a praia e a mata e que deixava as mãos tingidas entre os dedos.
«Ai, rapariga! Cheiras a maltês! O que é que andaram a fazer, que os fui chamar e não os vi? Onde é que se meteram? Andaram outra vez a desenterrar pinhões e a trepar às árvores?» A avó Joaquina brandia o poder de guardiã num tom peremptório, mas que não intimidava, já que os seus olhos não condiziam com o que inflectia pela voz de mando. Era fácil. Bastava corar ligeiramente enquanto lentamente se baixava a cabeça e se descia o olhar pela sua figura esguia e seca, de vestes sempre pardas, entre o preto e o cinzento, e deixar-se permanecer num silêncio respeitoso e envergonhado. Ela entenderia que o seu poder tinha sido acatado, que aqueles eram meninos travessos mas obedientes. Era quanto bastava para renovar a desculpa: «Foi só desta vez».
Agora, repetia-se esse ritual perante tudo. O perdão decorria do bom desempenho daqueles gestos tantas vezes ensaiados e experimentados, como se o essencial fora mecanizá-los e a eles recorrer em situações análogas. A previsibilidade era um jogo em que cada um tomava a sua vez. Errar um gesto era desequilibrar uma história, alterar-lhe abruptamente as regras e desafiar-lhe os preceitos. Serviu-se muitas vezes desses ensinamentos, adaptando-os às mais diversas situações. Não interferira na conduta alheia; não era da sua natureza alterar um jogo, se iniciado tacitamente. Entendia quando lhe dirigiam algum «Foi só desta vez» e cumpria a sua parte da mentira ao fazer transparecer que os aceitava. Não era apenas para obter uma paz que a tranquilizasse, mas para não lograr o desempenho do outro no jogo.
Errara. Ao alimentar uma linguagem que não era a sua, ao invés do equilíbrio, desmoronara-se interiormente. Pegava agora em cacos soltos, mirava-os e meditava. Quantas vezes lhe teriam dito: «Foi só desta vez»?
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