Não é fácil morrer com método (I)
Isabel escolheu a hora.
Acertou todos os relógios da casa pelo mostrador do seu minúsculo telemóvel. Era por ali que há muito tempo se acercava do mundo. Já tinha experimentado mantê-lo desligado. Pensava com isso demonstrar a si mesma que era capaz de se preservar, assim, afastada, como quem se apaga e a ninguém faz falta. Mas logo vinha a inquietação: "E se ele se lembra de me ligar? E se até tiver mudado de ideias, se tiver ponderado? Se tiver, por fim, sentido a minha falta?"
Encomendou as flores.
Seria Madalena a escolhê-las, quem mais? Ela saberia quais. Sabia o quanto a enjoavam os perfumes peganhentos que se colavam ao interior das narinas até a impelirem a suspender a respiração! Mas o impulso biológico vencia a resistência da vontade e lá vinha nova golfada daquele ar poluído, estonteante, a tapar todos os cheiros, a apor-se até à visão. Durante esses escassos segundos em que inspirasse, todas as coisas para onde olhasse ficariam sujas daquele cheiro! Como poderia, a seguir, recordá-las sem as associar àquela pestilência? Certos perfumes eram carrascos de imagens. Torturavam-nas até as desvalorizarem. A memória olfactiva encarregar-se-ia de as estragar, sempre que pensasse nelas. Mas Madalena saberia, dos cheiros, e das cores, também.
Conferiu as velas.
Seria melhor pedir mais. Pedir, pelo menos, mais umas duas caixas. Sim. Queria muitas, sempre acesas! Para não aparecerem aquelas sombras gigantescas nas paredes, a serpentearem pelos quadros, a trepar pelas cortinas; a lembrar demónios. Não queria o medo naquele palco. Pois se era o medo que a fazia acertar relógios...
Faria isso por si.
Provavelmente, tornar-se-iam desnecessários relógio, flores e velas, pois não precisaria de objectos, tempo, cores, perfumes ou luz. Nesse lugar não havia medo, nem dor; nem ele, nem ela. Seria, por certo, mais fácil nada ter, nada desejar. Esse era o seu último desejo.
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