.................OU SEJA, UMA CONCORDÂNCIA IDEOLÓGICA....................................................................................................

quinta-feira, abril 21, 2005

Não é fácil morrer com método (IV)


Looking Out by artofgold


Alguns bocados de madre-pérola tinham caído e os embutidos, que formavam uma geometria floral, lembravam aqueles sorrisos das crianças na idade cómica da muda dos dentes. Os bordos da tampa eram polidos, num redondo onde apetecia demorar o indicador direito, repetindo o gesto, como quem enrola uma melena de cabelos e depois deixa que se desencaracole, lentamente, deslizando suave por entre os dedos. Abriu a caixa muito devagar, para poder absorver aquele aroma do cedro.
«Minha querida,
Não prometo mandar-te esta carta de França, mas o que eu te tinha prometido era escrever de França, e o que é prometido é devido. Mas nem sequer é por dever que te escrevo; escrevo-te pelo puro prazer de estar contigo, ainda que separados por quase dois milhares de quilómetros.»
Descansar os olhos sobre a pele de uma carta era como atirar-se sobre um fofo edredão de penúgem e deixar o corpo embutir-se. Pegara na caixa porque lhe apetecia recriar as sensações que tinha ao lê-lo. Já não sabia distinguir se era a ele que amava, se ao que sentia quando o lia.
Anulava-se a distância por se evocar uma presença? A ausência era mais espessa quando o evocava, logo, nenhuma evocação equivaleria a uma presença. Que ilusão, recriar o espaço e viver dele! A imaginação construía imagens mas não conseguia trazer os objectos. Uma carta era um meio de viajar e de encurtar distâncias. Mas não supria a falta.
«(...) No fundo, isso inscreve-se plenamente nas minhas preocupações centrais: saber o que é o bem e o que é o mal; saber - ou procurar determinar - o que é uma vida humana e, sobretudo, o que é uma vida humana que mereça a pena ser vivida. E nisso tenho gasto a minha própria vida. É uma busca, às vezes insana, mas que vale a pena realizar.»
Guardara naquela caixa todas as cartas que ele lhe enviara, e relia-as a tempos; já quase as sabia de cor. Era através daqueles pedaços de escrita que conseguia provar a si própria que não o criara; que existia, que lhe escrevia, que lhe relatava sobre a sua presença no mundo e isso era dar provas de existência. Quanto ao local de onde lhe pudesse escrever, era-lhe indiferente. Tanto podia estar em França, como na Nova Zelândia, como em Lisboa, que a proximidade não diminuía o espaço que os separava. Isabel já o tinha alojado na sua cabeça. Era aí que ele habitava.
«(...) Assim se passaram... dias no país que foi, no seu tempo, o centro do mundo civilizado.
(...) P.S. - Descobri uma trilogia de um tipo que se chama Jean-Claude Guillebaud. Estou a ler o primeiro livro, que se chama La Tyrannie du Plaisir. Daí te mando esta pérola para reflexão:
"Le commerce avec la mort serai l'ultime aphrodisiaque de nos sociétés aux désirs éteints"»

Sem comentários: