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quarta-feira, abril 20, 2005

Não é fácil morrer com método (II)


Dream Science by artofgold


Coerente nas contradições, Isabel escreveu amo-te com a sua melhor caligrafia e deixou-se ficar a olhar para as letras meticulosamente desenhadas sobre a folha. Um espaço enorme, a convidar à escrita, e aquele amo-te ali sozinho, perdido como ilha rodeada de branco, a desafiá-la.
A intenção primeira era deixar que o punhal se cravasse nele. Imaginara-o entre o surpreso e o derrotado, quando lhe entregassem a carta. Aquela mensagem seca, sem mais explicações, era dúbia bastante para ser interpretada vezes sem conta, sempre com significado diferente. Sim, satisfazê-la-ia deixá-lo perplexo, para sempre preso àquela impossibilidade de esclarecimento. Imaginava-o de rosto fechado, lábios premidos em tensão e um ligeiro frémito a agitar-lhe a pele sobre as têmporas. Ficar-lhe-ia gravada, em tatuagem, aquela palavra amo-te, sem recurso a remoção. Haveria alguma coisa pior do que se ficar com uma dúvida que nunca mais se poderia esclarecer? Sobretudo por nada ser evidente, nem transparente; por nunca lhe ter sido dada uma certeza, apenas uma suspeição. O amor que nunca foi declarado, não existe. É como se fosse dada à palavra uma função contratual. Tudo o que existia sem ter sido pronunciado, não existia ainda. E podia-se decidir se o seria, ou não. Deixa-se um caminho livre por onde passear afectos e, não se reclamando provas, é facilmente diminuído ou enaltecido consoante as diferenças de humor. «Ama-se de muitas maneiras. Muitas são as faces e as linguagens do amor.», ouvira-lhe uma vez e retivera essas duas frases, como missangas descosidas a um bordado. Teria, então, oportunidade para se questionar sobre a natureza daquela mensagem. Uma excelente ocasião para ponderar sobre a leitura adequada. Ah, ironia das ironias! Debitava teorias inabaláveis, ideias formadas, robustas e inquestionáveis, e agora, ver-se-ia preso nas suas próprias certezas!...
Isabel divertia-se. Sentia-se vingada. Mas não apaziguada. Rasgou aquela folha, pegou noutra e desenhou, em letras minúsculas de imprensa, bem a meio da folha: amote. Voltou a olhar para lhe experimentar o efeito, e gostou. Olhou o relógio. Em seguida o papel. Sentia-se agradada com aquela decisão final. Um leve sorriso a cirandar no semblante e a respiração tranquilizara-se. Já nem ouvia o coração.

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