TALVEZ
Talvez
fosse mais fácil
erguer barricadas de fumo em luzes rosa ou madrepérola
polvilhar de sons acre e cheiros de colónias frescas
este bar qualquer de qualquer doca
só para se dizer que se está com a corrente estética
e que se é perito em não-sei-quê que os outros não
Talvez
não tivesse nenhuma piada
reconhecermo-nos na forma que temos
sem desejar o além que não nos encerra
como insistir em pintar de cores berrantes
um qualquer quadro que não vendemos
Talvez que até não fosse chato
sermos iguais aos outros a escolher gravatas
a arrumar na arca projectos infecundados e só escrever prosas flácidas
e embrulhar em alfazema o linho que hoje tecemos
com medo de fiar comida para traças
Talvez
até fosse correcto
beber maresia a horas certas pelo medo de congestões
falar dos outros invejando-lhes o ócio de fazer nada
e adormecer regalados de tanto cansaço
por enquanto não é mau pensar bem e pensar mal de tudo
é um luxo pouco dispendioso e fica-me bem com a cor dos olhos
acho mesmo que não me quero espreguiçar sem fazer barulho
ou não mascar pastilha elástica só por causa dos dentes
Talvez
fosse mesmo mais fácil
se não fossemos poetas - deve ser isso
entretanto levantamos as saias e saltamos riachos
e fazemos amor-na-praça-pública sem salas de cinema
porque não tomamos o mundo em doses a pensar na linha
entretanto aqui não se faz tarde
ainda temos tinta e vontade suficientes para nos limparmos
das teias que não deixámos segregar
por enquanto
Talvez
não fosse patético
continuar a intentar poemas
e deixar a seiva das palavras inundar os odres
das cavernas que a vida lentamente nos ocou
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